Argentina se despede de Mauricio Macri e se abraça ao peronismo
Alberto Fernández assume nesta terça-feira como presidente com a urgência de resolver a crise econômica e renegociar a dívida externa. Mourão vai representar o Brasil na posse
A Praça de Maio de Buenos Aires, cenário da memória política da Argentina, vivenciou uma noite de domingo muito agitada. Dezenas de operários retiraram a grade que desde as revoltas de 2001 a dividia de lado a lado e protegia a Casa Rosada das manifestações. Alberto Fernández, que na terça-feira substituirá Mauricio Macri como presidente, pediu a retirada da grade para que a praça sirva para “acabar com as divisões e unir a Argentina”. Não existirá mais grade, assim como primavera política: Fernández receberá um país que está há dois anos em recessão e tem urgência em renegociar uma dívida externa que se tornou impagável.
As manifestações chegarão agora às portas da sede do Governo, onde já se montou um palco para a festa que virá após a entrega de comando. A Argentina iniciará assim uma nova etapa, marcada pelo retorno do peronismo ao poder — que não é bem vista pelo Governo do vizinho Brasil. Jair Bolsonaro, que já havia lamentado a eleição de Fernández, não vai à posse. Decidiu mandar como representante, de última hora, seu vice, Hamilton Mourão, num "gesto político", segundo o próprio vice. É a primeira vez em 16 anos que um presidente brasileiro não prestigia a troca de comando no país vizinho.
Quando Fernández receber o cetro de comando das mãos de Mauricio Macri terão acabado quatro meses de uma transição envenenada. A derrota governista nas eleições primárias de agosto obrigou Macri a pilotar sem poder a crise econômica que prejudicou a parte final de seu mandato. Em 27 de outubro, as urnas ratificaram a vitória de Fernández em primeiro turno. O Governo anunciava à época que não poderia cumprir com os pagamentos da dívida contraída com donos de bônus privados e com o Fundo Monetário Internacional e impunha um torniquete cambiário para deter a sangria de reservas do Banco Central.
Em um gesto político, o presidente @jairbolsonaro me designou para representá-lo na posse do presidente da #Argentina Alberto Fernández @alferdez . Parto agora de Brasília rumo a Buenos Aires. pic.twitter.com/uag52hYl0t
— General Hamilton Mourão (@GeneralMourao) December 9, 2019
Urgido pelo calendário de vencimentos, Fernández terá menos de um semestre para revolver o problema da dívida e apenas poucas semanas para acalmar a ansiedade de seus eleitores, necessitados de respostas rápidas diante da perda do poder aquisitivo de seus salários e da inflação, que nesse ano superará 55%. O homem escolhido para resolver a herança recebida se chama Martín Guzmán, um discípulo do Nobel Joseph Stiglitz, que Fernández repatriou da Universidade de Columbia (Nova York).
Guzmán, de 37 anos, é um especialista em processos de renegociação de dívidas externas, mas sua experiência política é nula. Em novembro, o economista apresentou às Nações Unidas um plano sobre a dívida argentina. Disse à época que Buenos Aires não deve pagar capital e juros até 2022; evitar novos empréstimos do FMI; e neutralizar qualquer hipótese de quebra. Durante o período de indulto, a Argentina reordenará suas contas para tornar “sustentável” a dívida a médio prazo.
Fernández encontrará uma situação econômica debilitada por dois anos consecutivos de queda do PIB (a CEPAL estima -3% para 2019, a pior da região depois da Venezuela e Nicarágua) e um aumento da pobreza a 40%, o maior número em quase 20 anos. O novo presidente apressará a declaração de “emergência econômica”, uma fórmula que lhe permitirá fazer mudanças estruturais por decreto, sem passar pelo Congresso. Para lutar contra a inflação, tentará um grande acordo em que participarão sindicalistas e empresários dispostos, os primeiros, a moderar seus pedidos salariais; e aumentos de preços, os segundos.
Outro cenário de conflito será o Congresso. Fernández contará ali com a espada de Cristina Kirchner, que como vice-presidenta terá sob sua responsabilidade a titularidade do Senado. Kirchner teceu uma rede de apoios que lhe permitirá controlar a Câmara Alta sem problemas. Seu filho, o deputado Máximo Kirchner, liderará o bloco governista na Câmara Baixa. A ex-presidenta será uma figura em que valerá prestar atenção durante o novo Governo. Tão repudiada quanto amada, o desenvolvimento das causas judiciais por suposta corrupção que amealhou durante o macrismo será teste do nível de autonomia dos tribunais.
A longa despedida de Macri
Macri, enquanto isso, se despediu em câmera lenta. Na quinta-feira fez um balanço muito otimista de seus quatro anos como presidente em uma mensagem gravada que foi retransmitida em rede nacional (em todas as rádios e televisões do país). Durante 40 minutos, limitou a autocrítica ao desempenho econômico e descreveu o que considera os sucessos de sua gestão; a integração da Argentina no mundo, instituições mais sólidas, uma justiça mais independente, uma melhora energética e estatísticas oficiais confiáveis.
Dois dias depois, subiu em um palco na Praça de Maio para dizer adeus aos seus partidários. Ao ritmo de Volví a Nacer, de Carlos Vives, milhares de pessoas cantavam “Você foi o respiro e a esperança era tão grande” instantes antes de Macri aparecer acompanhado de sua esposa, Juliana Awada, e de seu candidato a vice-presidente, o ex-kirchnerista Miguel Ángel Pichetto. “Obrigado, obrigado, obrigado”, repetiu várias vezes o presidente, emocionado às lágrimas. “Esse coração já é mais de vocês do que meu”, disse à multidão, muito inferior aos atos anteriores como o realizado na avenida 9 de Julho dias antes das eleições.
Macri lamentou os supostos “entraves” colocados pelo peronismo durante seu mandato e enviou uma mensagem a seu sucessor: “Pode ter certeza de que após muito tempo irá encontrar uma oposição construtiva e não destrutiva. Encontrará uma oposição firme e serena que defenderá a democracia, a qualidade institucional e nossas liberdades”.
Na mesma noite, Macri divulgou através das redes sociais um vídeo chamado Momentos em que mostra sua faceta mais íntima. “Há tempo para as ambições. Para 2021, para 2023...”, diz no documentário, gravado em primeiros planos que procuram ressaltar a emoção da mensagem. No vídeo, prevê um futuro difícil à coalizão de Fernández pelas múltiplas correntes internas que se uniram para apoiar sua candidatura. “Quando tantos se juntam antes de uma festa, é difícil que a festa dê certo. O DJ precisa ser muito bom”, frisa.
Apesar de suas palavras, o macrismo é hoje o principal afetado pelas divisões, após o abandono de três deputados nacionais e a ruptura de seu bloco na província de Buenos Aires, a maior e mais povoada do país.
O último ato público do presidente antes da entrega do comando foi domingo em Luján. Participou de uma missa pela paz realizada diante da basílica da cidade em que Macri e Fernández se abraçaram em um gesto de harmonia sem precedentes. A partir de terça-feira se verá se não se limita a uma fotografia.
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