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Embaixador diz que pressionou Ucrânia por ordem de Trump e que houve ‘quid pro quo’

O diplomata, testemunha-chave do processo de "impeachment", diz no Congresso que a ajuda militar a Kiev foi condicionada à abertura de uma investigação que prejudicaria os Biden

Amanda Mars

A primeira testemunha com intervenção direta no escândalo ucraniano, Gordon Sondland, apareceu nesta quarta-feira publicamente no Congresso dos Estados Unidos e lançou duas acusações de alta voltagem contra Donald Trump: que foi o presidente quem ordenou a pressão ao Governo de Volodimir Zelensky para conseguir uma investigação judicial que prejudicasse os democratas e que, além disso, houve um quid pro quo — um toma lá dá cá — nessas manobras com os ucranianos. As moedas de troca seriam ajuda militar e um convite à Casa Branca. Para os democratas, essa permuta constitui um caso claro de "suborno" a ser avaliado no processo de impeachment, ou destituição, movido contra o presidente nova-iorquino.

Gordon Sondland, no início de sua declaração, nesta quarta-feira no Capitólio.
Gordon Sondland, no início de sua declaração, nesta quarta-feira no Capitólio.LOREN ELLIOTT (REUTERS)

A primeira esquisitice em toda a novela da trama russa é que foi Sondland, o embaixador dos EUA na União Europeia, o escolhido por Trump para negociações com um país que não faz parte do bloco, caso da Ucrâni, sobre as famosas investigações. Sondland, um empresário bem próximo de Trump, chegou ao posto sem experiência diplomática relevante depois de doar um milhão de dólares (4,2 bilhões de reais) ao comitê inaugural do recém-eleito presidente. Nesta quarta-feira, no Capitólio, ele se vangloriou de manter uma relação de confiança com o presidente, referindo-se ao tom coloquial de suas conversas, mas ainda assim jogou uma bomba para seu chefe e altos funcionários, como o secretário de Estado, Mike Pompeo, e o vice-presidente, Mike Pence, que, enfatizou, estavam perfeitamente cientes das negociações com Kiev.

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"Eu sei que os membros deste comitê formularam estas questões complicadas com uma pergunta simples: houve quid pro quo? Como testemunhei anteriormente, em relação à ligação telefônica da Casa Branca e a reunião da Casa Branca, a resposta é sim", disse ele em um momento-chave de sua declaração inicial perante o Comitê de Inteligência. “A todo momento, sempre agi de boa-fé. Como pessoa nomeada pelo presidente, segui as ordens do presidente”, afirmou.

A Câmara dos Representantes, de maioria democrata, iniciou as investigações sobre Donald Trump em 24 de setembro, quando emergiu uma série de manobras do presidente para que a Justiça ucraniana investigasse o democrata Joe Biden e seu filho Hunter, que tinha trabalhado para uma empresa de gás chamada Burisma enquanto seu pai era vice-presidente dos EUA. Trump pediu abertamente essa investigação ao presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, em uma conversa em 25 de julho que a própria Casa Branca tornou pública. Mas um ponto crucial da questão é se Trump também usou um convite de visita à Casa Branca e ajuda militar como moedas de troca. Se o Congresso considerar comprovado que Trump abusou de seu poder presidencial para prejudicar Biden, que quer ser o candidato democrata às eleições presidenciais em 2020, o presidente poderia ser destituído.

E aqui está o importante papel de Sondland, um dos mais proeminentes enviados de Trump, no exterior, ao longo deste episódio. Ele é o diplomata que, de fato, diz explicitamente a um conselheiro de Zelensky que a ajuda militar ao seu país — uma quantia de quase 400 milhões de dólares (cerca de 1,7 bilhão de reais) que havia sido congelada sem explicação — não seria entregue enquanto não fosse anunciada publicamente a investigação pedida pelo presidente dos Estados Unidos.

O embaixador reconheceu nesta quarta-feira que esteve trabalhando em estreita colaboração com o advogado pessoal de Trump, Rudy Giuliani, "por indicação direta" do presidente. “Os pedidos de Giuliani eram um quid pro quo para organizar uma visita de Zelensky à Casa Branca. Giuliani pediu que a Ucrânia fizesse uma declaração pública anunciando investigações de um servidor de computadores do Comitê Nacional Democrata e da Burisma. Giuliani estava expressando os desejos do presidente”, afirmou ele no Congresso.

A Burisma é a empresa que pagava um generoso salário a Hunter Biden, mas Sondland praticamente não citou os Biden em sua declaração e afirmou que naquele momento não estava ciente da conexão entre essa investigação que tanto interessava Trump e Joe Biden ou seu filho. Por outro lado, a investigação sobre o Comitê Democrata parte de uma teoria da conspiração sem base comprovada, segundo a qual a interferência eleitoral de 2016 não veio da Rússia para favorecer a vitória de Trump, mas da Ucrânia, e que, na verdade, o furto de e-mails do DNC foi uma fabricação feita da Ucrânia para apontar o Kremlin como culpado.

O outro quid pro quo é muito mais controverso, uma vez que não tem nada a ver com um convite à Casa Branca com o qual um presidente recém-eleito como Zelensky poderia se sentir reforçado, mas com a ajuda em matéria de segurança a um país em plena guerra com separatistas pró-russos no norte de seu território. Sondland argumenta que "na ausência de uma explicação digna de crédito" para a suspensão da ajuda — uma suspensão que ele rejeitava abertamente — concluiu que dependia da investigação. "Acabei concluindo que a retomada da assistência em matéria de segurança não ocorreria enquanto não houvesse uma declaração pública da Ucrânia se comprometendo com as investigações de 2016 e com a Burisma, como Giuliani pediu", explicou.

Assim, ele próprio se encarregou de transferir essa pressão a um assessor do Governo ucraniano chamado Andrei Yermak, com quem se encontrou em Varsóvia em 1º de setembro. "Eu disse a Yermak que acreditava que a retomada de tal ajuda não ocorreria enquanto a Ucrânia não fizesse algum tipo de comunicação sobre o assunto que havia sido discutido durante semanas."

Nesse ponto do caso, Sondland oferece uma via de escapatória para Trump e Giuliani, pois, como reconheceu nesta quarta-feira na fase de perguntas, o presidente nunca o informou explicitamente que a entrega de tais fundos estava condicionada. As citadas ajudas foram desbloqueadas em 11 de setembro, sem que o Governo ucraniano tivesse atendido aos pedidos naqueles dias, um argumento que os republicanos utilizam para defender que o presidente não pressionou nem tentou subornar a Ucrânia, mas agiu com um interesse legítimo da luta contra a corrupção

"Eu lhes disse que não queria nada, nenhum quid pro quo", disse o presidente nesta quarta-feira na Casa Branca, ao ser questionado por jornalistas. Ele também tentou marcar distância de Sondland, garantindo que mal o conhecia. O que se ouviu no Capitólio não deu essa impressão. Quando o advogado dos democratas, Daniel Goldman, perguntou ao embaixador sobre um suposto comentário dele a Trump, no qual alegou que Zelensky "amava seu traseiro" e faria o que lhe pedissem, Sondland riu e respondeu: "Parece algo que eu poderia dizer. O presidente Trump e eu nos comunicamos assim.”

Sondland validou nesta quarta-feira e-mails e mensagens para mostrar que altos funcionários como Pompeo e John Bolton, ex-conselheiro de Segurança Nacional de Trump, estavam cientes de todos os passos dados na Ucrânia. Seu testemunho, como os dos últimos dias, aponta para a sombra imponente de Rudy Giuliani em todo esse assunto. De acordo com o resumo do embaixador, Trump ordenava, seu advogado agia e os demais conheciam a situação. Os congressistas não vão julgar nos próximos dias se o comportamento é impróprio, mas se constitui um crime grave que torne necessária a destituição do presidente. A fase de declarações públicas está prestes a terminar.

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