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As seis semanas que levaram Trump às portas do impeachment

A peripécia da denúncia contra o presidente pelo escândalo da Ucrânia é um passeio pelas cloacas e as bondades do sistema norte-americano

Amanda Mars
Manifestantes a favor do ‘impeachment’ contra Trump nesta quinta-feira em Washington, diante do Capitólio.
Manifestantes a favor do ‘impeachment’ contra Trump nesta quinta-feira em Washington, diante do Capitólio.ANDREW CABALLERO-REYNOLDS (AFP)
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Um total de 77 palavras para resumir o escândalo que colocou o país mais poderoso do mundo de ponta-cabeça: “Recebi informações de vários funcionários do Governo norte-americano de que o presidente dos Estados Unidos está usando o poder de seu cargo para pedir a interferência de um país estrangeiro nas eleições de 2020. Essa interferência inclui, entre outras coisas, a pressão sobre um Governo estrangeiro para investigar um dos mais importantes adversários políticos domésticos do presidente. O advogado pessoal do presidente, Rudolph Giuliani, é uma figura central nesse esforço. O procurador-geral Barr também parece estar envolvido”.

Com brevidade, precisão e crueza, no estilo de um telegrama, começa a denúncia anônima do caso envolvendo Donald Trump e a Ucrânia, um bom reflexo da velocidade com que o escândalo pegou fogo. Um informante dos serviços de inteligência apresentou o escrito em 12 de agosto. E na noite de 23 de setembro, em um voo de Nova York a Washington, a veterana democrata Nancy Pelosi, presidenta da Câmara dos Representantes, começou a escrever à mão o rascunho do discurso com o qual anunciou o início da investigação para uma possível destituição de Donald Trump. O famoso impeachment.

Com a pressa, Pelosi deixou o papel no avião. Não importa, no dia seguinte, 24, parece tê-lo aprendido muito bem. A Câmara baixa, de maioria democrata, lançou a maquinaria do impeachment. Considerou as pressões do mandatário republicano sobre o presidente ucraniano para que a justiça desse país investigasse o ex-vice-presidente Joe Biden, o pré-candidato para 2020 mais bem colocado nas pesquisas, e seu filho Hunter, por conta de seus negócios em Kiev. Como na trama russa, este caso envolve um Governo estrangeiro e a procura de roupa suja que, se existir, prejudicará irremediavelmente as chances de seu oponente democrata ser escolhido. O desenlace, no entanto, se apresenta radicalmente diferente.

Para entender como em seis semanas se desencadeou uma tempestade que não aconteceu depois de quase dois anos de investigações sobre a interferência do Kremlin, é preciso voltar a uma ligação telefônica de 25 de julho e a uma reunião em Madri em 2 de agosto; ao papel de um delator anônimo que se indignou com o que estava descobrindo e a um funcionário com nome e sobrenome, Michael Atkinson, que deu um soco na mesa e foi ao Congresso. Por último, a uma mulher, Nancy Pelosi, que deu um passo à frente. A história da Ucrânia e o impeachment são um exame da saúde do sistema norte-americano, um passeio por suas cloacas e suas bondades. Explodiu em 2019, mas as origens remontam inclusive à revolução de Maidan, em 2014.

Os negócios de Biden na Ucrânia

Biden pai, então vice-presidente da Administração Obama, viajou várias vezes a Kiev para ajudar a consolidar o novo Governo de Poroshenko e, pouco depois, seu filho Hunter foi contratado pela Burisma Holding, uma das maiores empresas de gás do país, com um salário mensal de 50.000 dólares. A Casa Branca não considerou que houvesse conflito de interesses, apesar da polêmica contratação (principalmente porque o proprietário da empresa em questão, Mikola Zlochevski, é um oligarca próximo do ex-presidente Yanukovich, investigado por abuso de poder, lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito, mas nunca condenado).

Esse é o fio que Trump e Giuliani puxaram durante meses para tentar encontrar um possível caso de corrupção envolvendo o filho do veterano democrata. Acusaram o vice-presidente de ter conseguido a destituição do procurador-geral da época, Viktor Shokin, para deter uma investigação contra Hunter, mas não foi revelado que tenha havido alguma investigação em andamento sobre os Biden na Ucrânia. O ex-vice-presidente pediu a saída de Shokin, ameaçando até — como ele mesmo reconheceu em público — cortar as ajudas prometidas, mas esse pedido foi compartilhado por especialistas de organizações anticorrupção que denunciavam justamente a inação do procurador, incapaz de obter qualquer condenação notável.

O interesse em conseguir uma investigação sobre os Biden entrou em terreno pantanoso muito antes deste verão [no hemisfério Norte], de acordo com a denúncia do delator anônimo, que foi identificado pela imprensa norte-americana como um funcionário da CIA que foi designado à Casa Branca durante um tempo e afirma ter tido a colaboração de meia dúzia de fontes.

A pistola fumegante do caso

A conversa telefônica entre Donald Trump e seu colega ucraniano, Volodimir Zelenski, em 25 de julho representa, no entanto, a coisa mais parecida com uma pistola fumegante do caso, a prova mais incriminadora. Nela, o norte-americano pede insistentemente a Zelenski que investigue Biden e seu filho e lhe repete várias vezes que seu advogado pessoal, Giuliani, e o procurador-geral dos EUA entrarão em contato com ele para ajudá-lo. O delator anônimo não ouviu diretamente a conversa, mas vários funcionários que o fizeram ficaram alarmados com o conteúdo e com o que aconteceu depois, já que, de acordo com o denunciante, advogados da Casa Branca tentaram esconder a transcrição.

No dia 26, o dia seguinte à conversa do presidente, o representante especial do Governo dos EUA para a Ucrânia, Kurt Volker [que renunciou na sexta-feira], se encontrou com Zelenski e outros políticos ucranianos para discutir como “navegar” os pedidos de Trump. Em 2 de agosto Giuliani se reuniu em Madri com um dos assessores do presidente ucraniano, Andriy Yermak, para acompanhar os “casos” que discutiram.

Vários funcionários explicaram ao denunciante que, na realidade, essa foi apenas uma das muitas reuniões que o advogado de Trump teve com diferentes assessores de Zelenski. A denúncia cita outra reunião de Giuliani com o novo procurador-geral ucraniano, Yuriy Lutsenko, no fim de janeiro em Nova York e outra, em meados de fevereiro, em Varsóvia. Em 9 de maio, o The New York Times publicou que o advogado planejava viajar para Kiev para pressionar o Governo ucraniano a iniciar duas investigações que beneficiariam Trump, uma sobre a interferência eleitoral de 2016 e outra sobre o filho de Biden. Levantou um alvoroço de críticas que o fez cancelar a visita.

Dias depois das notícias sobre essa viagem cancelada, vários funcionários da Administração começaram a compartilhar com o denunciante sua preocupação com as manobras do assessor do presidente. Giuliani pareceu se impacientar em 21 de junho, quando publicou em sua conta no Twitter: “O novo presidente da Ucrânia ainda guarda silêncio sobre a interferência ucraniana em 2016 e a suposta mordida de Biden em Poroshenko. Está na hora de seus líderes investigarem os dois [assuntos] se quiserem purgar os abusos do pessoal de Hillary Clinton contra a Ucrânia”.

O difícil percurso da denúncia

Em meados de julho, o denunciante ficou sabendo de uma mudança na política de ajudas dos EUA à Ucrânia, pela qual a entrega de 391 milhões de dólares ficou bloqueada. Em 25 de julho aconteceu a famosa chamada. “Farei com que Giuliani te ligue e também que o procurador-geral te ligue e chegaremos ao fundo do assunto. Tenho certeza de que você vai resolver isso”, disse Trump nessa conversa, como seria divulgado exatamente dois meses depois, em 25 de setembro, quando o resumo por escrito da chamada se tornou público.

Foi então que esse informante anônimo deu um passo à frente, embora o percurso entre dar o alarme e fazer com que algo se mova também tenha tido algo de odisseia. A primeira queixa foi apresentada no início de agosto a Courtney Simmons Elwood, advogada-geral da CIA, que a levou ao conhecimento da Casa Branca, do Conselho de Segurança Nacional e do Departamento de Justiça, segundo o The New York Times. Quando o informante descobriu que Elwood falou com a Casa Branca, temeu que não acreditassem nele e enterrassem o assunto. Então, em 12 de agosto, apresentou seu relatório a Michael Atkinson, inspetor-geral da comunidade de inteligência. Este canal lhe ofereceu, além disso, muito mais proteções legais.

No fim de agosto, o escritório do diretor de Inteligência Nacional, com o interino Joseph Maguire à frente, também encaminhou o caso ao Departamento de Justiça, mas este não abriu uma investigação e Maguire não informou o Congresso. Atkinson o fez, advertiu a Câmara e o Senado de que existia uma denúncia sobre a qual ele não podia falar. A pressão dos democratas acabou fazendo explodir a panela de pressão. No fim de semana anterior à Assembleia das Nações Unidas em Nova York o motivo da denúncia foi divulgado e as placas tectônicas do Partido Democrata começaram a se mover.

A guinada de Nancy Pelosi

Nancy Pelosi, a pessoa mais poderosa do Partido Democrata, terceira autoridade da nação e especialista na selva de Washington, vinha sufocando durante todo o ano os legisladores mais combativos, que reclamavam um impeachment contra Trump por causa da trama russa. A atuação pouco conclusiva do promotor especial do caso, Robert S. Mueller, que não encontrou provas de negociata entre Trump e o Kremlin, acabou convencendo-a. O processo não apenas fracassaria no Senado, de maioria republicana, como ajudaria a vitimizar Trump diante de suas bases e seria politicamente contraproducente.

O caso da Ucrânia, no entanto, a fez mudar de posição. Diante do caráter tortuoso da trama russa, este caso é muito concreto, muito simples de entender e dispõe de uma pistola fumegante que o assunto da ingerência russa nunca teve. A pressão de muitos legisladores se intensificou e, depois de uma série de reuniões, na segunda-feira à tarde Pelosi tomou uma decisão.

Na terça-feira, em seu discurso, a presidenta da Câmara dos representantes citou um dos pais da pátria: “Nos tempos mais sombrios da Revolução Americana, Thomas Paine escreveu: ‘Os tempos nos encontraram para lutar pela democracia’”. Os riscos políticos continuam presentes — a popularidade de Bill Clinton cresceu depois de seu fracassado impeachment —, mas Pelosi, segundo disse na terça-feira, acredita que Trump não lhes deixou outra opção. “Devemos colocar o país antes do partido.” Trump já começou a denunciar uma “caça às bruxas” e as primeiras intimações a depor perante o Congresso já começaram a ser expedidas. O tempo encontrou todos.

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