Discurso do Itamaraty no exterior é sobre um Brasil que não existe
Em documentos enviados à ONU e a seus pares, diplomatas brasileiros colocam o país como um exemplo a ser seguido, e não como a de uma nação com desafios a serem superados
O Brasil vive uma democracia sólida, onde o espaço para sociedade civil está garantido. Na área social, estamos melhorando os programas, enquanto temos “a melhor” lei de imigração. Claro, lutamos contra a corrupção. No campo dos direitos humanos, os superlativos imperam. Somos “exemplo e inspiração” para o mundo. Foi assim que, nesta semana, a embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, apresentou o país aos demais governos, em um evento em Genebra. Poucos acreditaram. Alguns não disfarçaram o sorriso irônico. Muitos trocaram olhares surpresos diante de um discurso que mesmo um país escandinavo - com os melhores índices de desenvolvimento humano e social - jamais teria coragem de pronunciar.
Diante de uma imagem deteriorada pela crise na Amazônia e seus comentários misóginos e de apologia a ditadores, a administração de Jair Bolsonaro prolifera declarações no exterior para convencer o mundo de que o Brasil não é nada do que dizem indígenas, ongs, gays, defensores de direitos humanos, a ONU, líderes internacionais, o lobby do marxismo-cultural e - Deus me livre - os jornalistas.
Só existe um problema: o discurso adotado pelo Itamaraty para superar a crise é sobre um país que simplesmente não existe. Em documentos enviados à ONU como resposta a cobranças feitas pela entidade ou em reuniões em Genebra ou Nova York, o tom adotado pelos diplomatas não é mais a de que temos desafios e que eles precisam ser superados. Somos “exemplo” e, de fato, temos todos os programas em todos os setores, capazes de garantir que os direitos de todos estejam assegurados. E não ousem nos questionar, como fez a alta comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet. Certamente ela está errada. Ou então é socialista. Ou ambos.
A opção do Brasil, porém, é a de omitir a existência dos problemas. Em plena campanha para conseguir ser eleito para mais um mandato no Conselho de Direitos Humanos da ONU e pela busca por mercados, o Brasil não busca solução para seus dramas. Busca apenas uma mudança da percepção internacional sobre o país, sem quitar suas dívidas históricas.
A desigualdade, as mortes de defensores de direitos humanos, a crise vivida por grupos indígenas, o desmonte dos espaços para a sociedade civil, o discurso de ódio pelas autoridades, a apologia a ditadores e torturadores, as insinuações contra a democracia, o desmatamento, a violência policial, a falta de saneamento e tantos outros aspectos da realidade nacional simplesmente não existem.
Tampouco existe a xenofobia contra os novos imigrantes, registrada na sociedade brasileira, ou o racismo profundamente enraizado no país. Longe do discurso oficial, o Itamaraty parece se esquecer de como sua lei de imigração é alvo de sérios questionamentos na ONU. Escondido em sua bandeira colorida, o governo rejeita qualquer insinuação sobre a intolerância escancarada.
Ao optar por negar a realidade de profundas violações aos direitos humanos, o governo repete uma estratégia que só encontra equivalente na política externa do regime militar.
Documentos mantidos na sede do Alto Comissariado para Refugiados da ONU, datados dos anos 70, revelam como embaixadores brasileiros tentavam convencer seus pares de que a situação de direitos humanos no Brasil sob os militares não era nada daquilo o que se dizia. Nos discursos, a palavra “soberania” era recorrente. E, graças a ela, podiam dizer que não existia nem a tortura sistemática.
A partir de José Sarney, o estado brasileiro abandonaria progressivamente essa opção negacionista. Em seu primeiro discurso na Assembleia Geral da ONU, a mesma que será aberta em poucas semanas por Bolsonaro, ele constataria que o país estava saindo de “uma longa noite” autoritária.
Alguns anos depois, Fernando Collor subiria no mesmo palco para reforçar a ideia de que, numa democracia, os direitos humanos tinham um papel central, inclusive com uma dimensão internacional. “As afrontas aos direitos humanos devem ser denunciadas e combatidas com igual vigor, onde quer que ocorram”, disse. “A comunidade internacional muito poderá concorrer para que se criem condições mundiais de garantia do respeito aos direitos humano”, afirmou.
“Meu dever é o proteger os setores mais vulneráveis da sociedade. Sabemos quão dramáticos são os problemas de nosso País nessa área. Não os ocultamos, nem escondemos nossa determinação de enfrentá-los e resolvê-los”, disse Collor.
Naqueles anos, o Brasil iria aderir ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e ainda liderou de forma histórica os trabalhos, em 1993, da Conferência Mundial de Direitos Humanos realizada em Viena. Coube ao embaixador Gilberto Sabóia coordenar o comitê de redação da Declaração e Programa de Viena, uma primeira chancela internacional ao papel da democracia brasileira no mundo.
Anos depois, seria Fernando Henrique Cardoso quem usaria o palanque da ONU para alertar que a segurança no mundo não seria garantida pelas armas e aderiu aos tratados internacionais que colocariam de forma explícita o país no sistema multilateral. Já Luiz Inácio Lula da Silva desembarcaria com sua agenda, colocando a fome na pauta internacional.
Os problemas não foram resolvidos. Mas o mundo não tinha mais dúvidas de que o Brasil assumia suas responsabilidades, ainda que, muitas vezes, de forma incoerente, cínica e incompleta. Hoje, o governo Bolsonaro volta a usar o argumento da “soberania” para impedir que entidades internacionais das quais o Brasil soberanamente aderiu ao longo dos últimos 25 anos façam seu trabalho de monitorar violações no Brasil.
Mas, ao optar por omitir sua realidade, o governo não consegue escondê-la. Pelos corredores da ONU, o país passa a ser interpretado pelo restante do mundo como sendo um governo que não tem vontade política de lidar com seus demônios. Em seu livro mais recente, o escritor turco, Ahmet Altan, relata o papel da falta do espelho numa prisão. Ao ser detido pelo governo de Erdogan, ele constata que a cadeia não tem espelho e que, portanto, era como se tivesse sido “apagado”. Sem espelho, ele não tem mais sua imagem diante de si. Sem essa imagem, ele começa a duvidar de sua existência. Diante dessa dúvida, é sua resistência que é minada. Com a política deliberada de não se olhar no espelho, o Brasil apresenta ao mundo um país inexistente.
Sem esse espelho, tampouco vemos um Brasil da força de Marielle, cujo assassinato continua sem resposta. Não enxergamos um Brasil da genialidade de João Gilberto, que sequer contou com uma homenagem de estado. Ou um Brasil do humilde pedido de desculpas de Paulo Coelho diante das ofensas do presidente a líderes internacionais.
Se o Estado brasileiro busca de fato sua soberania e o respeito internacional, ele precisa começar com a coragem de se olhar no espelho, a se confrontar com sua realidade e buscar soluções. Apenas assim, poderá existir. Inclusive para seus próprios cidadãos.
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