Manual para frear Boris Johnson, salvar o Parlamento e evitar ‘Brexit selvagem’
As vias políticas ou judiciais para evitar o fechamento de Westminster são complexas e incertas
Dizem os norte-americanos que se algo caminha como um pato, grasna como um pato e nada como um pato, provavelmente é um pato. Por mais que Boris Johnson se esforce para se vestir com um véu de normalidade constitucional, sua decisão de suspender as sessões do Parlamento britânico por cinco semanas e tudo o que rodeia essa manobra política exala um aroma conspiratório e se encaixa na expressão afortunada que o escritor e deputado trabalhista Chris Mullin utilizou para dar título a seu famoso romance: A Very British Coup (Um golpe bem britânico).
O primeiro-ministro britânico mais controverso das últimas décadas se atreveu a usar, para fins políticos, um mecanismo formal que, em circunstâncias normais, não tem a menor importância. Uma vez por ano (geralmente no segundo semestre) ou sempre que se convocam eleições e emerge um novo Governo, a chefa de Estado britânica (a rainha Elizabeth II) encerra o período de sessões do Parlamento.
A manobra de Johnson, que colocou seus detratores com uma mão nas costas, incorporou um senso de urgência e drama na luta política. Uma ofensiva tripla, com recursos nos tribunais para anular a suspensão, pede aos cidadãos que bloqueiem as ruas e uma tentativa final no Parlamento de proibir por lei a saída desordenada da UE, antecipando uma semana decisiva na história do país. Bastaram algumas horas para a decisão de deixar o Parlamento sem voz ser contestada no tribunal. Apenas três, para ser exato.
Em Edimburgo, um grupo de 75 deputados e lordes pediu a Raymond Doherty, magistrado dos Supremos Tribunais da Escócia, para interromper a medida "pelas profundas questões de natureza constitucional que ela levanta". O juiz marcou uma audiência urgente para 6 de setembro. Em Londres, a empresária Gina Miller, que conseguiu que a Justiça britânica forçasse a ex-primeira-ministra Theresa May a submeter ao Parlamento a decisão de lançar o Brexit, já entrou com outro processo alegando o mesmo perante o Supremo Tribunal de Londres.
A comoção causada por Johnson despertou o Momentum, movimento popular de esquerda que funciona como uma corrente interna do Partido Trabalhista e que foi fundamental para Jeremy Corbyn assumir a liderança da formação. Ele convocou, em coordenação com os principais sindicatos, manifestações e protestos para o próximo sábado nas principais cidades do Reino Unido. O Momentum também convocou os cidadãos para uma grande manifestação em Londres na próxima terça-feira, quando o Parlamento planeja retomar temporariamente sua atividade. Nas últimas horas, quase 1,5 milhão de pessoas assinaram uma petição que pede ao Governo que revogue sua decisão de suspender as Câmaras.
Embora a rainha Elizabeth faça uso dessa prerrogativa real —uma das poucas que lhe restaram—, trata-se praticamente de um automatismo e sua decisão costuma atender a um pedido do primeiro-ministro. Dias depois, em uma cerimônia formal, Elizabeth II iria à Câmara fazer seu discurso: um texto preparado pelo Governo no qual são apresentadas as metas, projetos legais e ambições políticas do novo Executivo. E assim começaria um novo período de sessões.
Até aqui, tudo normal. O problema é que a situação atual no Reino Unido se distancia drasticamente da normalidade. O atual primeiro-ministro chegou ao poder em uma eleição interna dos conservadores, alçado por um punhado de eurocéticos radicais, depois que Theresa May renunciou ao cargo, abandonada pela própria bancada. Johnson não tem maioria na Câmara nem a legitimidade outorgada por uma vitória eleitoral. Herdou um Governo (ainda que tenha mudado todos os ministros) atolado no Brexit. De fato, May foi incapaz de encerrar o período de sessões durante mais de dois anos. E chegou ao poder em um momento de tensão máxima entre o Legislativo e o Executivo, sem uma clara maioria para qualquer decisão e com um speaker (presidente da Câmara dos Comuns), John Bercow, disposto a dar voz e poder aos deputados. Todos os ingredientes para uma crise constitucional de proporções desconhecidas havia décadas. A última vez que uma suspensão do Parlamento fora forçada como a única maneira de o Governo evitar a oposição dos parlamentares a uma de suas iniciativas legislativas foi em 1948.
Quais são os meios que os opositores de Johnson tem e qual o seu propósito para efetuar o Brexit em 31 de outubro? São vários, tanto políticos como jurídicos. Mas todos são complexos e cheios de arestas.
A Ordem Permanente número 24
É assim que se chama na linguagem parlamentar a possibilidade de um deputado pedir um debate de emergência. Essa era a opção pensada pelo Partido Trabalhista e pelos demais grupos da oposição, bem como um punhado de conservadores moderados, para impedir pela via legal um Brexit sem acordo. Vantagens: com o respaldo do speaker (que se dava como certo), seria o método mais rápido para aprovar uma resolução com força legal, na qual se poderia exigir um novo adiamento na data do Brexit. Inconvenientes: requer um processo longo e tedioso para o qual pode não haver tempo. Com os planos atuais de Johnson, o Parlamento não se reunirá novamente até 3 de setembro e será dissolvido no dia 10. A deputada trabalhista Yvette Cooper conseguiu uma façanha semelhante há alguns meses e levou adiante sua iniciativa adiante em um tempo recorde de três dias. O consenso contra May, cujo final se previa, não é o mesmo que o consenso contra Johnson, a quem muitos ainda desejam conceder uma margem de confiança.
A moção de censura
É o trunfo guardado na manga do líder da oposição, Jeremy Corbyn. Durante o verão, ele até sugeriu a possibilidade de liderar um Governo de unidade nacional com o único objetivo de estender o adiamento do Brexit, convocar eleições e prometer um novo referendo sobre a saída da UE. A proposta nunca decolou porque Corbyn provoca tamanha desconfiança no eleitorado que nem mesmo os conservadores mais assustados com Johnson gostariam de dar um tiro no pé. A situação mudou nas últimas horas e, se a moção for a única maneira de impedir que a voz do Parlamento seja cortada, alguns deputados, como o ex-Advogado-Geral do Reino Unido Dominic Grieve, sugeriram que estariam dispostos a votar com o nariz tapado. O tempo se encurta e, se Corbyn decidir seguir em frente com o desafio, isso deve acontecer a partir de 4 de setembro. Eles teriam então apenas cinco dias para derrubar um Governo, e nem assim desanuviaria o panorama.
Eleições antecipadas
Sob a nova Lei do Mandato Parlamentar Fixo, de 2011, uma moção de censura com êxito abre um período de 14 dias para uma tentativa de formar um novo Governo. Se essas duas semanas terminarem sem sucesso, novas eleições devem ser convocadas. Em teoria, e essa é uma suposição extrema, poderia ser formado um Governo de unidade para dar rumo à situação. Mas, liderado por quem? Com quais objetivos? E, acima de tudo, se Elizabeth II já usar sua prerrogativa real para dissolver o Parlamento a partir do dia 10 de setembro, existe uma maneira de reverter essa decisão? Ou os prazos são anulados? De qualquer forma, uma moção de censura bem-sucedida enviaria uma clara mensagem contra Johnson e abriria caminho para eleições que, paradoxalmente, poderiam acabar sendo o melhor trunfo para o primeiro-ministro.
O desafio legal
A prerrogativa de Elizabeth II de dissolver as Câmaras é uma das poucas que escapam ao controle judicial. Mas a decisão é um formalismo que responde ao conselho prévio transmitido pelo primeiro-ministro. É nessa nuance que os juristas acreditam haver uma gama de possibilidades. O que seria impugnado nos tribunais não seria a decisão da monarca, mas o conselho do Governo. A base jurídica seria a manifesta má-fé demonstrada ao fechar o Parlamento para silenciar a voz dos deputados e passar por cima de sua soberania em uma questão de tanto significado constitucional como o Brexit. Parece categórico, mas nem mesmo neste caso há consenso entre os especialistas. O Parlamento já deu luz verde à decisão de iniciar o processo de separação da UE, de modo que essa decisão constitucional já foi resolvida. De qualquer forma, a opção de recorrer à Justiça para impedir Westminster de fechar as portas se dá como certa e causará mais turbulência ao que já se antecipa como o "inverno (por enquanto, outono) do descontentamento" no Reino Unido.
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