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A última obsessão de Bolsonaro é dinamitar as eleições na Argentina

Presidente do Brasil prevê calamidades bíblicas todos os dias depois da vitória do peronismo, embora será obrigado a se entender no caso de um novo Governo assumir em seu parceiro do Mercosul

Jair Bolsonaro com o presidente argentino Mauricio Macri em 17 de julho.
Jair Bolsonaro com o presidente argentino Mauricio Macri em 17 de julho.Presidencia

O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, disparou críticas ao candidato Alberto Fernández desde que o resultado das primárias argentinas o colocou mais perto da Casa Rosada. Neste domingo repetiu a dose, comparando a Argentina com a Venezuela, recorrendo inclusive a citações bíblicas para continuar provocando o kirchnerista que pode suceder Mauricio Macri. “Com o possível retorno da turma do Foro de São Paulo na Argentina, agora o povo saca, em massa, seu dinheiro dos bancos. É a Argentina, cada vez mais próxima da Venezuela”, escreveu em seu Twitter. Em seguida escreveu um provérbio da Bíblia. “Quem lavra sua terra terá comida com fartura, quem persegue fantasias se fartará de miséria”, completou.

No sábado, Bolsonaro disse que não deixará o Brasil se aproximar de “políticas que não deram resultado em nenhum lugar do mundo”, referindo-se à Argentina. “Peçamos a Deus que nossa querida Argentina saiba como proceder para não retroceder”. Em entrevista ao jornal Clarín, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, seguiu o mesmo tom, apesar das declarações de Fernández de que não voltaria ao passado no que se refere ao Mercosul, por exemplo. Araújo comparou o adversário de Macri com uma boneca russa. “Isso que ele diz, que não será necessariamente igual ao que foi o Governo de Kirchner, eu, para usar uma imagem, vejo como uma boneca russa. Aí está Alberto Fernández, você o abre e lá está Cristina Kirchner, você a abre e lá está Lula, e depois [Hugo] Chávez”, ironizou. “Não temos ilusão que esse kirchnerismo 2.0 seja diferente do kirchnerismo 1.0”, completou Araújo.

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As declarações de Bolsonaro e de seu ministro das Relações Exteriores sobre a Argentina reforçam a imagem bélica que o Governo brasileiro construiu, repetindo a escalada retórica de Donald Trump em relação ao México. A diferença é que o Brasil não é os Estados Unidos e a Argentina não tem uma dependência semelhante do Brasil. As relações comerciais entre os dois países sul-americanos são convenientes nos dois sentidos e isso os obriga a se entenderem seja quem estiver no Governo.

“Estamos ‘condenados’ geográfica, política e economicamente”, avisa o diplomata brasileiro Marcos Azambuja, embaixador na Argentina na década de 1990 e hoje conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). “É como um tecido costurado ao longo de 200 anos, uma extensão natural de terra e inclusive de rios. Muitas gerações de estadistas trabalharam para superar desconfianças entre os dois países, não há como se darem mal”, acrescenta Azambuja.

O fato de a Argentina comprar principalmente produtos manufaturados do Brasil obriga o Governo brasileiro a tratar muito bem seu terceiro parceiro comercial. “Temos que ajudar a Argentina, fortalecê-la, seja qual for o resultado das próximas eleições”, alerta o presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil, José Augusto Castro. “Se a situação se agravar na Argentina, o que é ruim no Brasil ficará pior”, explica. Hoje a economia brasileira cambaleia e está longe de uma recuperação consistente. A projeção do PIB para este ano é de 0,8%, em um país com 12 milhões de desempregados.

A economia como corta-fogo

A economia é vista como um freio natural para a retórica insultante de Bolsonaro em suas relações exteriores. Não apenas Fernández foi vítima da metralhadora verbal do presidente brasileiro. Nos últimos dias, Bolsonaro atacou Angela Merkel por cortar recursos do Fundo Amazônia, que patrocina ONGs que se dedicam a proteger a floresta amazônica. Também atacou a Noruega, que anunciou que não doará mais dinheiro para o Fundo. Se por um lado agrada seus eleitores mais radicais, por outro Bolsonaro amplia a tensão entre os exportadores brasileiros que veem na atitude do presidente uma espécie de gol contra. “A retórica de Bolsonaro atrasa a recuperação econômica”, afirma o presidente da Câmara dos Deputados do Brasil, Rodrigo Maia.

O diplomata Marcos Azambuja, no entanto, avalia que esses discursos inflamados de Bolsonaro têm vida curta, pelo menos em relação à Argentina. “Isso é passageiro, efêmero. A realidade é irresistível e se impõe”, adverte Azambuja, lembrando que Brasil e Argentina são interdependentes desde a língua até o turismo. “Não podemos nos distrair dessa relação exemplar. Vamos deixar a oposição e a disputa na arena possível: o esporte”, conclui.

Apesar de suas intenções incendiárias, as declarações de Bolsonaro soaram apenas como um ruído de fundo na campanha eleitoral “nos vizinhos do sul”, como diz o presidente. A crise política e econômica impôs outras urgências na agenda dos argentinos, mais preocupados com a sucessão presidencial e a cotação do dólar do que com disparos do brasileiro.

Macri não se referiu à intromissão de Bolsonaro no processo eleitoral e tampouco houve comunicado do Ministério das Relações Exteriores nem repúdio do ministro das Relações Exteriores, Jorge Faurie. Quem teve algo a dizer foi o candidato mencionado, Alberto Fernández. O vencedor das primárias respondeu ao brasileiro em duas etapas, uma a quente e outra a frio, a segunda vez para se arrepender da primeira.

Na terça-feira, perguntado sobre as críticas, Fernández disse que estava orgulhoso do repúdio de alguém que considera “misógino e racista”. O líder peronista considerou Bolsonaro como resultado de uma “conjuntura” e que o Mercosul, o principal alvo dos ataques, era uma realidade que ultrapassava qualquer Governo. Cinco dias depois, Fernández voltou a se referir aos ataques diários que ele e sua força política recebem de Brasília, mas moderou as palavras e evitou insultos.

“A verdade é que foi um erro me enredar nas bravatas dele”, disse, em declarações ao jornal Página 12. “O vínculo entre o Brasil e a Argentina deve ser indissolúvel, somos parceiros demasiado profundos para pensar que isso pode ser dissolvido por um presidente de conjuntura, se chame Bolsonaro ou se chame Alberto Fernández. Se Bolsonaro quer dançar esse tango, não conte comigo”, disse. Nesta terça-feira, os mercados argentinos abrirão depois do feriado de segunda-feira. Neles estará colocada toda a atenção, apesar do ruído que chega do Palácio do Planalto.

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