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“Macri mexeu no bolso de todos nós. Hoje o dinheiro não rende”

Parte do eleitorado argentino que votou no presidente em 2015 lhe dá as costas por causa da crise

Grupo de pessoas compra numa feira de Buenos Aires.
Grupo de pessoas compra numa feira de Buenos Aires.EFE

A Argentina está tão polarizada entre peronistas e macristas que nem um lado nem o outro imaginava que Alberto Fernández venceria, por uma diferença de 15 pontos percentuais, as eleições primárias de domingo passado. Por trás dessa virada eleitoral há muitos eleitores desencantados com o Governo de Mauricio Macri, que o responsabilizam pela piora econômica do país.

Um deles é Gennaro, que há 30 anos administra um kiosco [ponto de venda de biscoitos, bebidas e balas] no centro de Buenos Aires. “Votei neles porque pensei que tirariam a droga das ruas, trariam um pouco de segurança, mudariam as coisas ruins que havia. Mas, desde que [Macri] assumiu, nos decepcionou: arruinou tudo”, afirma Gennaro, que prefere não dizer o sobrenome e não vê a hora de Macri deixar o cargo.

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“As gôndolas do supermercado estão cheias, mas ninguém pode comprar. Pergunte em qualquer loja daqui, estão esperando até outubro. Se esse sujeito continuar, vão ter que fechar as portas. Os únicos que ganham dinheiro são eles. Dizem que Cristina [Fernández de Kirchner] é uma ladra. Eu aceito, mas e eles? Roubam aos montes com o mundo financeiro. Eles mesmos aumentam o valor do dólar e eles mesmos compram”, prossegue Gennaro, que no domingo votou na peronista Frente de Todos, liderada por Alberto Fernández. Numa cervejaria e numa loja de roupa, os donos confirmam que estão com a corda no pescoço e pensam em fechar.

Macri chegou ao poder em dezembro de 2015 prometendo controlar a inflação e erradicar a pobreza. Não cumpriu nenhuma das duas promessas. Os preços aumentaram 26,9% no ano em que assumiu, dispararam 40% em 2016, quase 25% em 2017, cerca de 48% em 2018 e, nos primeiros seis meses deste ano, já acumulavam uma alta de 22%. A pobreza, que girava em torno de 30% no final do kirchnerismo, subiu para 32%. “Votei nele porque entendia que este país precisava de uma mudança. Achei que ele podia ser a solução para uma estabilidade econômica, uma industrialização mais aberta ao mercado internacional e uma implementação de um mercado industrial interno. Ao invés de estabilidade, retrocedemos”, afirma Bartolo Santana. Entre as críticas deste recepcionista ao Governo, estão os aumentos de mais de 400% nas tarifas dos serviços públicos que o kirchnerismo subvencionava amplamente. “[Macri] mexeu no bolso de todos nós. Entendemos que o gás, a luz, a água e o transporte não podiam valer o que valiam, mas tampouco houve um equilíbrio. Hoje o dinheiro não rende. Antes eu morava sozinho, agora divido o apartamento e os gastos. Tenho que usar a bicicleta para voltar para casa porque senão fica complicado, por sorte ela ainda é grátis. E tivemos que eliminar outras coisas. Comemos menos carne, por exemplo”, diz ele.

Santana faz parte do pequeno grupo de eleitores que buscou uma opção alternativa a Fernández e Macri. Sua aposta é no ex-ministro da Economia Roberto Lavagna, que obteve 8,35% dos votos nas primárias. Consenso Federal, a aliança liderada por Lavagna, foi a terceira força mais votada depois da peronista Frente de Todos (47,3%) e da macrista Juntos pela Mudança (32,3%). “Macri me decepcionou e, aconteça o que acontecer, não votarei nele. Se houver segundo turno e só ficarem ele e Fernández, não vou votar”, afirma, convencido.

"Se voltarem, vou embora do país"

"Vou resumir: se eles voltarem eu vou embora do país, vou para a Espanha", dispara Stella Maris, descendente de espanhóis. Como ela, a maioria dos argentinos são filhos de imigrantes que chegaram no século passado. E são muitos os que têm dupla cidadania, em especial espanhola e italiana. Durante a crise do corralito em 2001, milhares de argentinos cruzaram o Atlântico em busca de trabalho e uma vida melhor. Alguns regressaram a partir de 2010, ao ver que o país se recuperava e que a Europa, por sua vez, demorava a sair da recessão. Agora, de novo, é comum escutar peronistas e macristas dizendo que voltarão ao país de seus pais, avós ou bisavós se vencer o candidato que não apoiam. Acostumados a fazer piada com tudo, já há argentinos que criaram grupos para se despedir dos perdedores no aeroporto de Ezeiza. E taxistas que fazem promoções nas redes sociais para levá-los até lá.

As primárias foram criadas para definir os candidatos dentro de cada força política. Mas nesta eleição, ao não haver disputas internas nas grandes coalizões, limitaram-se a ser um ensaio geral dois meses antes das eleições gerais. Quatro anos atrás, o kirchnerismo também venceu as primárias (36,6% contra 28,5% do macrismo), mas acabou derrotado no segundo turno, um dado mencionado pelos defensores do atual presidente. “[Os peronistas] não ganharam, as eleições são em 27 de outubro. Nesse dia eu votarei de novo em Macri, e tenho a esperança de que tudo tenha sido um choque e que voltaremos à realidade. Sabe qual é o problema do argentino? Que, enquanto tiver seu asadito [churrasquinho] e um vinhozinho, está tudo bem. Isso e os planos [sociais]. O argentino não gosta de trabalhar nem de estudar, prefere retornar a um governo totalitarista como o que já tivemos que sofrer durante 12 anos”, afirma Stella Maris, enquanto espera o trem na estação portenha de Retiro.

Embora Macri tenha revertido o resultado adverso das primárias de 2015, agora a tarefa será muito mais difícil. O kirchnerismo obteve quase 11 pontos percentuais a mais do que há quatro anos, e Macri só venceu na província de Córdoba e na capital argentina, seu berço eleitoral. Na província de Buenos Aires, que responde por 37% do eleitorado e foi essencial para seu triunfo em 2015, ele perdeu para Fernández por uma diferença de 20 pontos. Se os números se repetirem em outubro, Fernández será proclamado presidente eleito sem necessidade de segundo turno. Para conseguir isso, deve superar os 45% dos votos ou obter mais de 40% e uma vantagem de 10 pontos percentuais sobre o segundo colocado. Do contrário, enfrentará Macri no segundo turno em novembro.

Ante o panorama desenhado no domingo, os peronistas se mostram aliviados. “Quase votei em Macri, mas por sorte não. Nesses anos eu fiquei sem trabalho e meu marido também. Pude voltar a trabalhar com carteira assinada, sou empregada doméstica, mas meu marido não. Ele é eletricista, mas agora trabalha de forma informal na construção”, diz Rocío García, enquanto sua filha de 11 anos corre pela estação. “Tivemos que mudar para uma casa menor e pior porque não tínhamos dinheiro para o aluguel. Voltei a trocar algumas coisas por outras porque não tenho dinheiro para o supermercado. Tivemos que reduzir muitas despesas. Macri administra bem o país para as grandes empresas, não para as pequenas, nem para o comércio ou as pessoas. Só para os ricos. Tomara que perca”, pede ela, olhando para cima.

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