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O jogo de risco de Bolsonaro com a Argentina

Presidente diz que argentinos buscarão refúgio no país caso "esquerdalha" volte ao poder. "É um conflito com um mercado fundamental para nossas exportações”, diz analista

Bolsonaro recebe Macri em Brasília, em janeiro deste ano.
Bolsonaro recebe Macri em Brasília, em janeiro deste ano.Alan Santos (PR)
Felipe Betim
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A contundente vitória do peronista Alberto Fernández, que tem a ex-presidenta Cristina Kirchner como vice em sua chapa, nas eleições primárias argentinas de domingo ecoou na polarizada política brasileira. O assunto foi um dos mais comentados no Twitter, com a esquerda comemorando a vitória como se fosse sua, enquanto liberais e conservadores lamentavam. Apesar de Fernández ser considerado mais moderado que Cristina, a política intervencionista na economia que marcou o kichnerismo no poder e a promessa da chapa de renegociar o acordo do país com o Fundo Monetário Internacional (FMI) trouxe pânico aos investidores. No Brasil, que tem no vizinho o terceiro maior mercado comprador, a Bolsa seguiu a tendência internacional: o dólar subiu 1% e chegou a 3,98 reais, o maior patamar desde maio, enquanto que ações negociadas na Bovespa caíram 2%. A reação mais explosiva e extrema foi, como era previsível, do presidente Jair Bolsonaro, que sempre apoiou publicamente a reeleição de Mauricio Macri. Nesta segunda-feira ele dobrou sua aposta.

“Não esqueçam o que, mais ao Sul, na Argentina, aconteceu nas eleições de ontem. A turma da Cristina Kirchner, que é a mesma da Dilma Rousseff, que é a mesma de [Nicolás] Maduro e [Hugo] Chávez, e Fidel Castro, deram sinal de vida aqui”, discursou o chefe de Estado durante um evento em Pelotas, no Rio Grande do Sul, na fronteira com a Argentina. “Povo gaúcho, se essa esquerdalha voltar na Argentina, nosso Rio Grande do Sul poderá se tornar um novo estado de Roraima”, acrescentou, referindo-se ao Estado do norte do Brasil que faz divisa com a Venezuela e recebeu centenas de milhares de refugiados nos últimos anos.

O presidente da extrema direita também pediu a seus assessores uma avaliação da derrota de Macri para definir como o Brasil vai se posicionar, segundo o jornal O Globo. Os membros mais radicais de seu gabinete defendem, ainda segundo O Globo, que o país repense sua participação no Mercosul, com o qual a União Europeia acaba de assinar um acordo comercial, ainda pendente de aprovação nos parlamentos. Os assessores lembraram que Bolsonaro sempre foi contrário ao bloco sul-americano, mas que reviu sua opinião depois que se aproximou do Governo Macri.

Outros auxiliares mais cautelosos defendem, no entanto, que se espere o resultado final das eleições de outubro e que o Governo não se posicione de maneira precipitada. A China é o principal parceiro comercial do Brasil, mas a Argentina está em terceiro lugar, pois é o principal comprador de produtos manufaturados brasileiros. O secretário de Comércio Exterior, Lucas Ferraz, diz publicamente que a reeleição de Macri é vista como algo positivo pelo Ministério da Economia e que facilitará a reforma do Mercosul e sua abertura comercial. Se Fernández-Cristina finalmente vencerem as eleições de outubro, o Brasil poderá se abrir unilateralmente aos mercados internacionais, afirmou o secretário. “O que estaria em discussão seria a flexibilização das regras do bloco, o que permitira ao Brasil seguir sozinho e acabaria com a TEC [Tarifa Externa Comum]. Mas isso não significaria o fim da área de livre comércio”, afirmou.

Para o cientista político Fernando Luiz Abrucio, Bolsonaro está criando problemas mesmo caso seu favorito Macri vença, algo que parece improvável à luz dos resultados de domingo. “O Brasil terá comprado uma briga com metade da Argentina. É um conflito com um mercado fundamental para nossas exportações”, explica. “Isso pode significar, por exemplo, uma campanha de boicote por parte do país aos nossos produtos. Os empregos da indústria automobilística dependem muito de que continuem comprando de nós”, segue Abrucio. Na América Latina, a Argentina segue como principal parceiro comercial do Brasil. As exportações somaram um total de 14,9 bilhões de dólares no ano passado. O Ministério da Economia salienta, no entanto, que as exportações para o país vizinho caíram 15,5% na comparação com 2017, por causa da redução de produtos automotivos.

A fala de Bolsonaro também representa um erro político por não separar a política interna da diplomacia, argumenta Abrucio. “Os partidos podem dizer o que quiserem, mas o presidente não pode intervir nas eleições de outros países”, explica. Ele lembra que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva cometeu o mesmo erro quando se intrometeu em eleições como as de El Salvador ou da Venezuela, inclusive sugerindo o marqueteiro João Santana para as campanhas. “Mas Lula sempre se deu bem com a Colômbia de Uribe, os EUA de George Bush ou o Chile de Sebastián Piñera. Bolsonaro se equivoca à enésima potência. Alguém tem de dizer a ele que a Argentina funciona ao ritmo da rivalidade entre o River e o Boca e que o seu belicismo pode dar mais votos a Alberto Fernández”, opina. A defesa aberta de Bolsonaro do regime ditatorial brasileiro (1964-1985) pode também provocar rechaço inclusive entre eleitores à direita na Argentina, onde os torturadores da ditadura foram e seguem sendo julgados. 

O discurso belicista de Bolsonaro representa também uma profunda mudança na própria diplomacia, afirma Abrucio. O Brasil aumentou seu poder na América Latina nos últimos 30 anos, desde José Sarney, o primeiro civil a ocupar a presidência depois da ditadura militar, até Michel Temer. E o fez “respeitando os outros países” e conquistando “uma liderança” na região, explica. “Bolsonaro está rompendo com essa política externa parcimoniosa, uma tradição nossa”.

A esquerda comemora, a direita lamenta

Diante do tom extremado de Bolsonaro, políticos e militantes progressistas comemoraram entusiasticamente a vitória da chapa Fernández-Cristina, vista por muitos também como uma vitória contra “o fascismo e as fake news” ou o início de um retorno da esquerda latino-americana. “A vitória de Alberto Fernández e Cristina Kirchner nas primárias presidenciais é uma luz no fim do túnel para o povo argentino e para a América Latina, e um enorme alento para todos que lutamos pela democracia. Triunfo animador das forças progressistas sobre o neoliberalismo”, tuitou a ex-presidenta Dilma Rousseff. O perfil oficial de Lula também divulgou uma mensagem de felicitações aos vencedores. “É preciso dar esperança ao povo, trazer dias melhores e cuidar de quem mais precisa. Um forte abraço do amigo Lula”. Alberto Fernández respondeu: “Eu te mando um forte abraço que espero poder te dar em breve”, disse o candidato, que também contribuiu para a mistura de aliança regional e campanha ao visitar o petista em Curitiba.

Cada um buscou sua própria narrativa do resultado das primárias. Muitos liberais interpretaram a derrota de Macri como o retorno ao populismo kirchnerista e reclamaram que ficou faltando mais ajuste fiscal e mais políticas mais liberalizantes na economia para que o país deslanchasse. Já alguns partidários do ex-candidato Ciro Gomes afirmaram que a vitória se deve ao fato de que Cristina Kirchner se contentou com a vice-presidência e cedeu sua candidatura a uma pessoa mais moderada e com menos rejeição — algo que, segundo defendem, Lula deveria ter feito em favor de Ciro em 2018. Já a extrema direita vê, assim como Bolsonaro, o retorno do socialismo no país vizinho. Afinal, a política argentina invadiu a polarizada política brasileira e serviu para que Bolsonaro continuasse sua escalada retórica que também usa para manter sua fiel base de apoiadores unida.

Para Abrucio, “as pessoas não estão compreendendo o que está acontecendo na Argentina” e estão tentando interpretá-lo de acordo com a realidade brasileira. No entanto, adverte que Alberto Fernández tem um perfil mais de centro e é um político da velha guarda, com um perfil muito diferente do kirchnerismo. “Tom Jobim sempre disse que o Brasil não é para amadores, mas a Argentina é menos ainda. É um país polarizado há 80 anos”.

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