Na Argentina, falar da ditadura e dos militares que a conduziram é motivo de desonra
País teve um dos regimes mais sanguinários do continente, com ao menos 30.000 mortos
Em 18 de setembro de 1985, o procurador Julio César Strassera completou 52 anos. Uma coincidência o levou a ficar nesse dia diante dos militares que logo seriam sentenciados por crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura. Strassera tinha trabalhado duro para conseguir a condenação de Jorge Rafael Videla, Emilio Massera, Leopoldo Galtieri, Armando Lambruschini e Orlando Agosti por criarem um plano repressivo que deixou 30.000 vítimas, entre mortos e desaparecidos. O argumento do promotor colocou um ponto na história argentina. Strassera citou Dante Alighieri e chamou os responsáveis pelo terrorismo de Estado de "tiranos que viveram de sangue e rapinagem". E concluiu sua leitura com uma frase que ainda produz calafrios nos argentinos: "Senhores juízes, nunca mais". O tribunal teve que pedir à polícia que esvaziasse a sala, que irrompeu eufórica.
Passaram-se 34 anos desde o julgamento da junta militar promovido pelo Governo de Raúl Alfonsín (1983-1989). Strassera citou no encerramento de suas considerações finais o Nunca Mais que foi o título do relatório da Conadep, a comissão da verdade liderada pelo escritor Ernesto Sábato e que registrou quase 9.000 casos de assassinados e desaparecidos pela ditadura. A cifra era provisória, compilada meses após o término do Governo militar graças ao depoimento de sobreviventes e parentes das vítimas. O trabalho da Conadep e, meses depois, o julgamento da Junta Militar, colocou a Argentina na vanguarda da luta contra a impunidade na América Latina. Esse exercício de memória e justiça continua ativo no país sul-americano. O espírito do Nunca Mais sobreviveu à passagem dos anos.
A última marcha, há uma semana, para lembrar o aniversário do golpe de 24 de Março de 1976 – que pôs fim ao Governo constitucional de Isabel Perón — e as vítimas da ditadura reuniu dezenas de milhares de pessoas na Plaza de Mayo, em frente à Casa Rosada, em Buenos Aires. Como todos os anos, os atos de repúdio se repetiram nas escolas públicas, a imprensa dedicou espaços à memória daqueles anos e os editores aproveitaram a força do aniversário para publicar livros sobre o assunto.
Acontece que há pouco espaço para dúvidas na Argentina: a ditadura e os militares que a lideraram são uma palavra feia, ruim, neste país onde o terrorismo de Estado foi especialmente sanguinário. Seus líderes já morreram, todos no ostracismo, sem que sequer se saiba com exatidão onde estão seus túmulos. Não há monumentos ou ruas que lembrem aqueles que certa vez foram amos e senhores.
Na Argentina não existe o "videlismo", o "masserismo" ou o "galtierismo", muito menos um partido militarista que supere a insignificância ou um político que defenda esses anos em público. Quem tiver aspirações eleitorais, faz melhor se guardar suas opiniões.
O caminho da memória, no entanto, teve altos e baixos. As ações judiciais contra as Juntas seguiram as leis de Obediência Devida e de Ponto Final, aprovadas entre 1986 e 1987, após uma série de revoltas militares nos quartéis. As duas leis puseram fim a novos julgamentos e deixaram sob proteção os comandos médios e baixos que, com a desculpa de terem cumprido ordens, haviam sequestrado, torturado e assassinado. O então presidente Carlos Menem deu um passo além nos anos 90 e assinou um indulto para os chefes, que voltaram para suas casas. Mas as organizações de Direitos Humanos logo encontraram uma brecha no decreto de Menem e ativaram dezenas de causas por roubo de bebês: a ditadura tinha idealizado um plano para entregar para adoção as crianças nascidas nos centros de tortura de mães assassinadas em seguida.
O roubo de bebês devolveu à prisão personagens como Videla, mas ainda restavam dezenas de investigações congeladas pelas chamadas "leis do perdão" promulgadas por Alfonsín. Durante o Governo de Néstor Kirchner (2003-2007) tudo mudou. Em junho de 2005, a Corte Suprema declarou a inconstitucionalidade de ambas as normas e reativou dezenas de ações judiciais. O último relatório da Promotoria de Crimes contra a Humanidade do Ministério Público registrou 575 ações contra repressores, com 3020 imputados. Desde 2006, quando os casos foram reabertos, até setembro de 2018, data da última estatística, os tribunais argentinos proferiram 209 condenações contra 862 indiciados. Outros 715 militares aguardam sentença. A história sombria da ditadura está viva na Argentina.
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