_
_
_
_

Alberto Fernández, o discreto professor que pode presidir a Argentina

O grande favorito nas eleições presidenciais havia se retirado da vida pública até Cristina Kirchner o convencer de liderar o peronismo contra Macri

Enric González
O candidato presidencial Alberto Fernández, em Buenos Aires.
O candidato presidencial Alberto Fernández, em Buenos Aires.R. Ceppi (Getty)

Alberto Fernández era, no início deste ano, um ex-ministro-chefe de Néstor e Cristina Kirchner, que se afastara do centro da política e dava aulas na Universidade de Buenos Aires. Há exatamente três meses, Cristina Fernández de Kirchner o convenceu a ser candidato à Presidência, com ela como vice-presidenta. O Governo de Mauricio Macri zombou da manobra, descreveu Alberto Fernández como um fantoche do Kirchnerismo e acreditou que tinha a reeleição praticamente assegurada. Hoje, depois de arrasar em uma eleição primária que não significava nada, mas acabou significando muito, Alberto Fernández se tornou um presidente virtual e o grande favorito na decisiva votação de outubro. Em cem dias, a Argentina e a vida de um homem discreto viraram de cabeça pra baixo.

A grande mudança começou a ser costurada antes do último Natal. Cristina Fernández de Kirchner pôs pessoas de sua confiança para sondar nas águas obscuras do peronismo e calcular se seu retorno seria viável. Intermediários como o advogado Eduardo Valdés, ex-embaixador argentino na Santa Sé e especialista nos meandros do Partido Justicialista, transmitiram a uns e outros a mensagem de que Cristina lamentava os erros de seu segundo mandato, atribuindo-os à dor causada pela viuvez (Néstor Kirchner morreu repentinamente em 2010), e prometia se emendar.

Um dos contatados foi Alberto Fernández, ministro-chefe de Néstor durante todo o seu mandato e no de Cristina durante seu primeiro ano, de 2007 a 2008. Alberto rompeu com Cristina depois de um de seus grandes erros, a guerra aberta contra o patronato agrário e, desde então, longe do primeiro plano, a criticava com dureza. Alberto Fernández, 60 anos, estava desde 2014 casado com a jornalista e atriz Fabiola Yáñez, 38 anos. Morava em um luxuoso apartamento em Puerto Madero, lecionava Teoria do Crime e Sistema de Penalidades na Faculdade de Direito de Universidade de Buenos Aires. Tocava violão em seu tempo livre e saía diariamente para passear com seu cachorro Dylan. Não parecia ansioso para voltar à linha de frente da política.

Mais informações
“Macri mexeu no bolso de todos nós. Hoje o dinheiro não rende”
Nicolás Dujovne, ministro argentino da Fazenda, pede demissão
Macri congela combustível tentando reverter fracasso eleitoral

Depois de manter inúmeras reuniões e retornar o contato com dezenas de pessoas que se haviam distanciado dela, a ex-presidenta entendeu que ainda continuava causando muita rejeição. Um terço do eleitorado a adorava, o restante não a queria. O que fazer? Surgiu o nome de Alberto Fernández, homem com toda a experiência possível: subdiretor-geral no ministério de Raúl Alfonsín, tesoureiro de campanha de Eduardo Duhalde, chefe de campanha de Néstor Kirchner e depois chefe de seus ministros e aliado do federalista Sérgio Massa após sua ruptura com Cristina. A ex-presidenta só precisou de dois dias para convencê-lo. Em 18 de maio, foi anunciada a candidatura dos Fernández. Alberto como presidente, Cristina como vice-presidenta.

"Não poderiam ter cometido um erro mais terrível, Alberto Fernández nunca ganhou uma eleição e não contribui com nenhum voto, é um títere de Cristina. Macri será reeleito com facilidade", disse um alto dirigente do Governo na Casa Rosada. Não era o único a pensar em algo assim. Poucos compreenderam que a missão de Alberto (o uso de nomes próprios é comum na política argentina) não consistia em ganhar votos, mas em sufocar a acidez de Cristina e reunificar o peronismo. Era um homem em quem os governadores justicialistas, relutantes em relação à ex-presidenta, podiam confiar; em quem poderiam confiar líderes moderados como Sergio Massa; com quem até os grandes grupos financeiros e midiáticos, fortes inimigos do kirchnerismo, poderiam conversar.

O desenho da campanha foi peculiar. Nos poucos atos eleitorais que protagonizaram juntos, Alberto e Cristina falavam sentados em um sofá, na forma de uma conversa descontraída. Em geral, Alberto desempenhou o papel principal. No comício final, em Rosário, com as principais figuras do peronismo alinhadas no palco, Cristina foi a banda de apoio no ato de abertura de Alberto e pronunciou um discurso breve e moderado.

As pesquisas mostravam de forma consistente uma relativa igualdade entre as duas grandes candidaturas e um elevado número de indecisos. A suposta indecisão foi considerada uma camuflagem para o "voto envergonhado". Eram pessoas, segundo analistas e o próprio Jaime Durán Barba, o guru eleitoral de Macri, que não queriam reconhecer sua intenção de apoiar de novo um presidente cuja gestão econômica tinha causado grande dificuldade aos argentinos. E acabou não sendo assim. Eram pessoas que silenciaram seu voto na candidatura de uma ex-presidenta multiprocessada por corrupção, propensa ao autoritarismo e mais divisionista do que qualquer outro.

Na hora da verdade, no último domingo quase metade do eleitorado considerou que com Alberto e com o peronismo unido as coisas seriam diferentes. Eram simples primárias, mas Alberto Fernández obteve 47% dos votos. Em 27 de outubro, 45% seriam suficientes para ser proclamado presidente eleito.

A grande surpresa causou pânico nos mercados financeiros e horrorizou milhões de eleitores que identificam o peronismo com o chavismo. Alberto Fernández se tornou a nova referência. Desde sua conversa com o presidente Macri, na quarta-feira, o vencedor das primárias se esforça para transmitir tranquilidade, embora sua briga verbal com o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, garanta futuras turbulências diplomáticas. Neste domingo, no entanto, ele colocou um freio no confronto com o presidente brasileiro. Em entrevista ao jornal argentino La Nación, afirmou que buscaria estabilizar a relação entre os dois países caso seja eleito. "Não se preocupem, porque não penso em fechar a economia", disse. "Para mim, o Mercosul é uma questão central. E o Brasil é nosso principal parceiroe continuará sendo. Se Bolsonaro pensa que eu vou fechar a economia e que, então, o Brasil vai sair do Mercosul, que fique tranquilo, porque não penso em fazer isso. É uma discussão burra", completou.

Alberto também mantém contatos discretos e indiretos com o Banco Central para contribuir para sustentar a surrada moeda nacional e parece seguir fielmente o prontuário distribuído à militância após o sucesso de domingo.

“Que o eleitorado nos volte a escolher”, diz o manual, “depende de que o ódio que sente por Macri, a razão do mal-estar em sua economia doméstica, tenha mais peso em sua decisão do que o medo que possa ter em relação a nós". Para conseguir isso, recomenda-se discrição e distância da imprensa, deixar que Macri se vire sozinho com os problemas econômicos, evitar sinais de euforia e de autoritarismo e não dizer nunca "voltaremos", mas "vamos sair do poço". E falar de reconciliação nacional, como Alberto Fernández faz insistentemente.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_