‘The Intercept’: Vazamentos abalam reputação da Lava Jato, mas impacto jurídico depende do STF
Diálogos colocam em xeque imparcialidade de Sergio Moro, mas debate sobre natureza das provas e implicações políticas pelo gigantismo da operação tornam precipitado falar de consequências jurídicas. STF, de novo, terá papel central
Ainda é cedo para dizer as consequências jurídicas práticas das mensagens vazadas pelo The Intercept Brasil para os processos que derivaram da megaoperação Lava Jato, num desfecho que depende basicamente do Supremo Tribunal Federal, onde já estão ou chegarão em última instância as contestações. O certo, porém, é que os diálogos privados que estão vindo a público desde o dia 9 de junho já colocaram em xeque a imparcialidade do juiz Sergio Moro e abriram uma brecha até para questionar o comportamento, por exemplo, dos delatores que deram a base de informações para as 159 pessoas que já foram condenadas até agora pela operação. Ao EL PAÍS, um dos delatores da Lava Jato conta que não conseguiu fazer seu acordo de delação na primeira vez que tentou. Na visão dele, a investigação tinha somente um alvo: incriminar e prender o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O delator ouvido pela reportagem disse que, para ele, era claro que os envolvidos só seriam ouvidos se eles relatassem a participação do ex-presidente nos casos de corrupção envolvendo a Petrobras.
Poderia ser mais um relato isolado de um colaborador, mas todos do gênero vão ganhando peso enquanto vão sendo somados aos bastidores conhecidos em capítulos. Nesta sexta-feira, novas mensagens reveladas, desta vez pela revista Veja em parceria com o The Intercept, apertaram o cerco contra Sergio Moro e os procuradores. As mensagens mostram a ingerência do juiz sobre a operação, determinando prazos, se opondo à delação de Eduardo Cunha e até dando conselhos de comunicação à força-tarefa. De seu lado, Moro segue pondo em questão a veracidade das mensagens, afirmando que elas podem ter sido adulteradas e repudiando a divulgação das conversas de maneira "distorcida e sensacionalista".
A reportagem da Veja vem na esteira das demais revelações. No último final de semana, a Folha de S. Paulo em parceria com o The Intercept havia mostrado como alguns acordos de delações premiadas foram encaminhados ao longo da operação, um dos pontos mais controversos no mundo jurídico desde o princípio da investida. O conjunto das conversas dá a entender que Léo Pinheiro, dono da construtora OAS e principal testemunha no caso do triplex do Guarujá, mudou suas explicações dos fatos ao longo de meses, até chegar a uma versão final em que incriminava o ex-presidente Lula, preso desde abril do ano passado. Em carta à Folha, Pinheiro, que está preso em Curitiba, negou que tenha sido pressionado pela Lava Jato a mudar a de versão.
Enquanto o jogo fica na palavra de um contra o outro, é cedo para falar sobre as implicações jurídicas e políticas que essas mensagens podem causar aos processos. A reação imediata limita-se, por ora, apenas ao âmbito da opinião pública, afirma Ivar Hartmann, professor da FGV no Rio e coordenador do Supremo em Números. "As conversas reveladas são, acima de tudo, um excelente teste de posicionamento das pessoas", diz. "De um lado, há quem não mudou de opinião porque já tinha plena convicção de que o Moro era parcial. Mas nada do que surgiu antes dessas conversas se compara ao que foi revelado agora. Há quilômetros de distância entre o que havia de parcialidade de Moro e do que se tem até agora".
Em tempos de polarização, há um reforço de posições para os campos ideológicos opostos —a favor ou contra Lula e o próprio Moro, que nesta sexta-feira foi aplaudido de pé por empresários—, mas o conteúdo das conversas também reforça uma tese há muito tempo defendida pelos advogados de Lula, a da suspeição de Moro. Para a defesa do ex-presidente, o juiz “sempre revelou interesse na condução do processo e no seu desfecho”. Mas para Hartmann, a insistência numa tese que, até então, não tinha provas suficientes, foi um tiro pela culatra da defesa do petista, que agora perdeu munição para insistir nessa tese. “Eles esgotaram esse argumento mesmo quando não havia provas suficientes da parcialidade de Moro”, diz. “Se eles não tivessem cometido esse erro estratégico, e só agora alegassem parcialidade, com provas agora, sim, robustas, as chances de isso ser aceito pela Justiça seriam maiores”. Caso o Supremo Tribunal Federal cumpra com a agenda, sua posição só será conhecida em agosto, quando o habeas corpus da suspeição do ex-juiz no processo do triplex de Lula está previsto para ser julgado.
Ainda assim, o que exatamente a Justiça aceitaria com base nas conversas reveladas? Há quem discuta já a anulação total da condenação, uma questão mais delicada na visão de Hartmann. “Há provas de parcialidade [de Moro], mas a anulação não é automática”. De acordo com ele, há perguntas que ainda precisam de respostas. “O que resultou dessa parcialidade? Foi só Moro quem chancelou essas decisões? Se foi imparcialidade numa instância, eu vou anular o processo inteiro?”, diz. "Mesmo na pior das hipóteses, processos isolados podem ser anulados. Mas falar em anulação da Lava Jato como um todo é sensacionalismo".
A hipótese de se anular toda a operação é usada por Sergio Moro até como estratégia de defesa, em desafio a seus críticos. A pergunta de fundo que faz é sempre a mesma: se ele for punido, como ficará as relevações e confissões trazidas à tona pela Lava Jato? Durante audiência na Câmara nesta semana, o ministro da Justiça voltou à carga. "Se ouve muito da anulação do processo do ex-presidente [Lula]. Tem que se perguntar quem defende, então, Sérgio Cabral, Eduardo Cunha, Renato Duque, todos esses inocentes que teriam sido condenados segundo o site de notícias", afirmou o ministro. "Nós precisamos de defensores também dessas pessoas, para defender que elas sejam colocadas imediatamente em liberdade, já que foram condenados pelos malvados procuradores da Operação Lava Jato, os desonestos policiais e o juiz imparcial".
O argumento tem impacto, porém, é complexo para os dois lados. Se o vazamento das mensagens for desconsiderado, a atuação de Moro, já visto com reservas, for chancelada pelo Supremo, seria uma sinalização péssima para o resto do sistema, de acordo com um conjunto de juristas. Mas se a maioria dos ministros avaliar que as mensagens respaldam a leitura de parcialidade no caso de Lula, haverá efeito cascata para outras condenações da Lava Jato de Moro e não só dele? Qual o custo, também de opinião pública, de abalar juridicamente uma operação ainda popular?
Por ora, o Supremo só está instado a julgar, no segundo semestre, o pedido de habeas corpus de Lula baseado na suspeição de Moro. O pedido, apresentado no ano passado, antes portanto da publicação das mensagens, é sustentado por alguns argumentos. Dentre eles, o de que Moro se beneficiou da prisão de Lula, já que se tornou ministro de Jair Bolsonaro que, por sua vez, poderia ter sido derrotado pelo petista nas eleições. Desta vez, o STF terá de sopesar não só um momento em que a imagem da Lava Jato está arranhada como o nome de Lula. Os dois fatores pesam sobre os ministros, que já se mostraram suscetíveis à opinião pública em julgamentos de cunho político. “Por se tratar de um ex-presidente, pode haver muita pressão”, afirma Hartmann.
A outra questão de fundo central é a natureza dos vazamentos e se suas revelações poderão ser usadas como provas. Moro diz que os diálogos foram adquiridos por “hackers”, de forma criminosa e passíveis de adulteração, enquanto o The Intercept afirma que vieram de uma fonte anônima. Há um inquérito da Polícia Federal em curso para investigar a suposta invasão dos celulares. “A eventual contestação de legalidade de obtenção dessas mensagens é irrelevante para que se defenda os réus”, diz Hartmann. O próprio ministro Gilmar Mendes já se posicionou nesse sentido. Ele é um dos cinco ministros que compõe a Segunda Turma do Supremo que devem julgar o pedido de suspeição de Moro.
Por outro lado, as revelações não são capazes de incriminar, de, alguma forma, Moro, que até o momento participou somente de audiências na Câmara e no Senado para falar sobre o assunto. “A prova pode ser utilizada para beneficiar os réus, mas para prejudicar Moro num processo disciplinar não poderia ser utilizada”, afirma. Da mesma forma, Deltan Dallagnol, cuja investigação aberta pelo Conselho do Ministério Público já foi arquivada, também não deve sofrer nenhum processo, segundo o especialista. De toda forma, para Hartmann, ainda que Moro não seja punido, ele deveria se afastar do Governo. "Existem indícios suficientes para reconhecer que houve parcialidade na atuação. Num país desenvolvido, numa democracia sólida, Moro já teria pedido demissão". Outra questão que tem sido levantada é o papel de Moro que, como ministro, está à frente da Polícia Federal: vai ingerir no trabalho da polícia que investiga o suposto ataque hacker? Sem falar que a PF não confirma nem desmente se está investigando Glenn Greenwald, fundador do The Intercept, no inquérito que apura a suposta invasão de celulares, o que levou ao repúdio da oposição e de ao menos uma organização internacional de imprensa.
Questionamento sobre as delações e alvos seletivos
Outros pontos controversos que tem um caminho em tese longo para ter consequências práticas é o questionamento sobre as delações e a suposta escolha seletiva de alvos da investigação. Nas mensagens, aparece conteúdo também mostra como a Lava Jato operava, mandando prender peças-chaves da investigação, para que, pressionados, delatassem o que a procuradoria queria ouvir. Esse caminho é apontado pela mensagem enviada pelo procurador Januário Paludo, dia 20 de abril de 2016: “Acho que tem que prender o Leo Pinheiro. Eles falam pouco. Quer dizer, acho que tem que tem que deixar o TRF prender”. Cinco meses depois, Moro considerou que Pinheiro solto representava risco à investigação e à ordem pública e mandou prendê-lo. O acordo de delação de Léo Pinheiro, ainda não homologado pelo Supremo Tribunal Federal, é um dos 184 acordos firmados até agora.
Nas mensagens trocadas, além da interferências do então juiz nos caminhos da operação, há sugestão de que alvos seriam preferíveis por motivos estratégicos —se ficar comprovado que alguém foi poupado pelos procuradores, poderia haver crime de prevaricação (quando um funcionário público indevidamente retarda ou deixa de praticar ato de sua função). Moro sugeriu que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fosse poupado na Lava Jato (o juiz não queria “melindrar alguém cujo apoio é importante”) e a conveniência ou não de investigar o tucano, inclusive para emitir uma mensagem de "imparcialidade", também foi discutida pelos procuradores, de acordo com os vazamentos.
Sem estar alheia aos abalos, a Lava Jato quer mostrar que segue em pleno funcionamento e usar isso como trunfo. Na terça-feira, quase um mês após as primeiras mensagens publicadas, a assessoria de imprensa da procuradoria publicou uma nota com o balanço do ano até o momento: 14 denúncias oferecidas no primeiro semestre deste ano, se igualando ao total de 2017 e superando 2018. Em cinco anos da operação, além de levar à condenação 159 pessoas em 50 processos sentenciados por lavagem de dinheiro, corrupção passiva e ativa e organização criminosa, 2,5 bilhões de reais retornaram aos cofres da Petrobras, segundo a força-tarefa. O valor ainda é baixo, se considerado o total do ressarcimento pedido, de 40,3 bilhões de reais.
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