Carta branca de Witzel a ação de ‘snipers’ eleva o temor por abusos policias no Rio
Moradores e ativistas relatam aumento nos casos de violações desde vitória do governador. Ministério Público cobra explicações sobre atiradores de elite
O mototaxista C. S. voltava de Minas Gerais no domingo de 10 de março quando policiais militares bateram em sua casa. O alerta foi dado pela sua irmã, que imediatamente telefonou para o rapaz, de 29 anos. Ele estava com sua esposa, suas duas filhas e a chave de sua residência, que fica no Complexo da Penha, zona norte do Rio de Janeiro. Em seguida, recebeu outra mensagem de sua irmã: os agentes arrombaram a porta e entraram. "Quando cheguei estava tudo bagunçado", conta ele ao EL PAÍS. Ele gravou um vídeo no qual aparece roupas jogadas no chão, armários abertos e cama virada em pé. Segundo denuncia, os agentes levaram seu violão, sua bolsa com o troco do mototáxi e o dinheiro que havia acumulado para pagar o aluguel: "Tinha uns 2.000 reais". Ele denunciou o caso na 22ª Delegacia da Polícia Civil.
A história do mototaxista se juntam a outros relatos que apontam que o clima de tensão sob o qual vivem moradores das favelas cariocas têm se intensificado desde que o governador Wilson Witzel (PSC) venceu as eleições de 2018 prometendo dar carta branca aos policiais e defendendo que criminosos armados com fuzis deveriam morrer com um tiro "na cabecinha". Uma promessa que Witzel vem reafirmando desde sua vitória. A última vez foi em entrevista publicada pelo jornal O Globo, há uma semana, na qual garantiu que snipers (atiradores de elite) já estão atuando. "O sniper é usado de forma absolutamente sigilosa. Eles já estão sendo usados, só não há divulgação", disse ele. "Quem avalia se vai dar o tiro na cabeça ou em qualquer outra parte do corpo é o policial. O protocolo é claro: se alguém está com fuzil, tem que ser neutralizado de forma letal imediatamente", acrescentou.
A declaração do governador motivou o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (Gaesp), do Ministério Público do Rio de Janeiro, a pedir explicações às autoridades fluminense sobre as atuações dos atiradores de elite. A oposição também apresentou uma representação requerendo a apuração dos fatos envolvendo snipers. Dois dias após a publicação da entrevista, o ministro Sergio Moro disse não estar "familiarizado" com a presença de snipers no Rio. "Não estou familiarizado com essa questão e precisaria entender melhor ao que o governador está se referindo. O fato é que um policial não precisa esperar levar um tiro de fuzil pra reagir. Mas é preciso averiguar em quais circunstâncias ocorreria essa autorização para o disparo à distância”, afirmou o ministro da Justiça e Segurança Pública, durante uma feira sobre o tema no Estado.
O EL PAÍS entrou em contato com a Polícia Militar e a Polícia Civil para pedir mais detalhes sobre como essas operações vêm ocorrendo, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem.
"Polícia age com menos pudor"
"Na segunda-feira seguinte à eleição, eu subi na Alvorada [Complexo do Alemão] para fazer uma matéria. Eu trabalho lá há 8 anos, mas foi a primeira vez que eu subi com medo. Foi muito esquisito, porque os policiais nos olhavam com uma cara ameaçadora de vencedor, rindo", diz Melissa Rachel, jornalista do Voz das Comunidades. Ela conta que ainda não há informações de pessoas baleadas por snipers. Mas o tiroteio continua. "Foram quatro só em março". A região metropolitana do Rio de Janeiro registrou 772 tiroteios ou disparos de armas de fogo em março de 2019, de acordo com um balanço da Fogo Cruzado, plataforma digital colaborativa que mapeia o uso de armas de fogo em locais públicos. É um aumento de quase 17% na comparação com fevereiro, que teve 662 registros. O mês de março teve 126 feridos e 124 mortos nestes episódios, diz a plataforma.
SABE O QUE É ISSO? Crianças de uma escola aqui da favela, abrigadas no corredor da escola, por conta dos tiros de mais uma operação da policial, iniciada em horário escolar!
— Santiago, Raull. (@raullsantiago) March 14, 2019
E tem quem defenda meritocracia e diz que previlégio é mimimi. Uhum, fácil falar! pic.twitter.com/GMwEs1zewl
No dia 3 de março, a moradora Ana Maria, de 54 anos, morreu baleada durante uma operação, conta a jornalista. No dia 8, apareceu um helicóptero ficou atirando em direção ao morro, algo que não acontece com frequência no Alemão, fazendo que escolas ficassem sem aula. No dia 14, outro tiroteio fez com que alunos tivessem que ficar abrigados numa escola. No dia 21, um homem que segurava um bebê no colo foi baleado na mão. "Aumentou a quantidade de denúncia de roubos e truculência durante operações. Os policiais entram na casa dos moradores e roubam comida da geladeira, jogam televisão no chão, reviram armário. Tenho reparado que a política está entrando mais sem medo, sem pudor", afirma Rachel.
POLICIAL MACHÃO numa favela do Rio de Janeiro, ameacando as pessoas, dando tiro para o alto a esmo, mandando o povo tomar no cu e ainda diz para alguém, que “o próximo é você”.
— Santiago, Raull. (@raullsantiago) March 23, 2019
ISSO É CRIME, não??? pic.twitter.com/GIHrjUJcmK
Esse ambiente de medo e tensão também se intensificou no Complexo da Maré. "É difícil dizer que há snipers atuando aqui, mas desde o ano passado estamos percebendo um aumento no número de mortos com indícios de execução sumária", conta Lidiane Malaquini, que coordena o eixo de segurança pública e acesso à Justiça da ONG Redes da Maré. Isso significa que, de 24 homicídios ocorridos em 2018 na Maré, 19 ocorreram em decorrência de operações policiais. Segundo a ativista, 19 das mortes tinham indícios de execução. "Algumas dessas pessoas morreram no meio da rua. Desde novembro temos relatos de policiais em cima das lajes atirando em pessoas", completa. Só neste ano há testemunhos de duas operações com helicópteros atirando em direção a Maré. O governador nega, no entanto, que algum civil inocente tenha sido atingido por disparos de dentro das aeronaves das polícias. "E algum morador foi atingido até agora? Não. A utilização dos helicópteros é fundamental para coibir o tráfico", afirmou Witzel, na mesma entrevista.
Alguns casos chamam a atenção em um Rio de Janeiro que há anos vive uma crise aguda na área de segurança pública. Na favela de Manguinhos, moradores denunciaram seis mortes — quatro no ano passado, duas neste ano — e acusam snipers de atirar de uma torre da Polícia Civil. A corporação diz estar investigando o caso. Foi também neste ano, em 8 de fevereiro, durante uma ação policial nos morros da Coroa, Fallet-Fogueteiro e dos Prazeres, que ao menos 15 pessoas foram executadas depois de vários minutos sendo torturadas dentro de casas, segundo indicam imagens tomadas após a operação e relatos de testemunhas. A Polícia Militar afirma que houve confronto com os traficantes. Depois dessa operação, a que teve o maior número de mortos desde 2007, Witzel apareceu ao lado do secretário da Polícia Militar para respaldar "uma ação legítima da polícia para combater narcoterroristas".
Outro caso foi o de Kauan Peixoto, um menino de 12 anos morto após, segundo relatos de testemunhas, ter sido abordado por policiais no último 16 de março na favela da Chatuba, em Mesquita, região metropolitana do Rio. A Polícia Militar afirma que, após um confronto com criminosos, encontrou o garoto "caído ao solo" na retaguarda. "Umas 20 pessoas estavam no bar e viram tudo. Todas contaram a mesma coisa: assim que ele se encostou na parece, já tomou um tiro na barriga", contou Luciana Pimenta, mãe do garoto, ao EL PAÍS. "Ele dizia 'não sou bandido, não, sou morador'. Mas foram lá e deram um tiro na perna. Arrastaram ele, algemaram uma criança de 12 anos e jogaram dentro do camburão", acrescentou. Outro parente, ouvido em condição de anonimato pela TV Globo no Rio, afirmou: "Pegaram pela bermuda e jogaram ele na Blazer. Os outros policiais ficaram catando as cápsulas todinhas. Não deixaram uma cápsula pra trás. Não tinha tiroteio".
Os dados do Instituto de Segurança Pública, autarquia vinculada ao Governo do Estado, apontam um aumento de mortes "por intervenção de agentes de estado". Janeiro e fevereiro deste ano foram especialmente violentos e bateram novos recordes: foram 160 mortes no primeiro mês deste ano, enquanto que em janeiro do ano passado foram 157 (+ 2%); no segundo mês, 145 pessoas morreram, frente a 102 óbitos no mesmo período de 2018 (+ 42%). Isso significa uma média de 5,1 mortes por dia provocadas por agentes. Já o ano de 2018 registrou 1.534 mortes causadas por policiais, segundo os dados oficiais. Isso se traduziu em 4,2 mortes por dia, um recorde desde que se iniciou a contagem deste índice, em 1998. Para Malaquini, da Redes da Maré, o discurso de Witzel "legitima algo que já acontece" há muito tempo. "Já existia sniper antes, a polícia já atuava dessa forma".
A Praça Seca foi o bairro líder no nº de tiros registrados: 46. Isso representa quase 10% do total de tiros registrados no Rio. O último mês em que o bairro havia sido "campeão" em tiros foi em maio de 2018, com 48 registros. #TirosRJ #FogoCruzadoRJ pic.twitter.com/GtIJOffRcN
— Fogo Cruzado RJ (@fogocruzadoapp) March 31, 2019
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