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Milícia, o exército popular a serviço de Maduro

O poder do líder bolivariano na Venezuela se baseia no exército e nas milícias, um corpo de um milhão de pessoas treinadas com vassouras e rifles, que prometem dar suas vidas pela Revolução

Carolina González, cabo da milícia, observa aos usuários do metro na estação Altamira, em Caracas.
Carolina González, cabo da milícia, observa aos usuários do metro na estação Altamira, em Caracas.Andrea Hernández

Carolina, cabo da milícia, e Carlos, sargento, estão preocupados com uma invasão estrangeira na Venezuela. Muito. Estão dispostos a dar suas vidas por Nicolás Maduro e levantam a voz quando insistem que é preciso estar preparados para defender a pátria. Eles dizem isso uma e outra vez. Até que relaxam e a conversa flui. Então baixam o tom e ficam com os olhos marejados quando lembram que antes vinham todos os domingos para comer bolos e chocolates neste café em Caracas e que hoje só podem fazê-lo porque não têm de pagar a conta.

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Carolina González, de 45 anos, e Carlos Ortegano, de 73, são dois dos quase um milhão de milicianos que existem na Venezuela, segundo o Governo de Maduro. Um corpo criado por Hugo Chávez para militarizar a população e que seu herdeiro promete engordar até chegar a dois milhões neste ano. Eles devem servir para defender o país de uma hipotética invasão estrangeira, mas, enquanto isso, se dedicam a vigiar habitantes, empresas expropriadas, ajudar no metrô ou encher comícios. Um corpo a serviço do Governo que recebe 18.000 bolívares, menos de seis dólares (23,54 reais) por mês.

Carolina se alistou na milícia no dia em que morreu o “comandante eterno” Hugo Chávez, em 2013. Fez cinco dias de formação, quando aprendeu a marchar, lealdade e a respeitar o superior, e três meses de treinamento, quando pegou um fuzil pela primeira vez. “Eu não quero matar ninguém, mas aprendemos a atirar acreditando que temos nosso pior inimigo na frente.” Durante esses seis anos nunca teve de enfrentar um invasor estrangeiro, mas exerceu “tarefas de segurança” em um mercado, em um parque, em uma escola e no metrô de Caracas, onde vigia as catracas. “Eles nos ensinam primeiros socorros, disciplina, política, amor à pátria. Gostamos de ajudar e é importante estarmos treinados e preparados”, acrescenta Carlos.

Apesar de sua boa disposição, a roupa cáqui que vestem é a mais desprestigiada de todas na Venezuela, porque nem sequer causa medo e são vistos como informantes a serviço do regime. O medo do chavismo de um levante popular nas áreas mais pobres de Caracas fez deles um método eficaz de controle social, e Carolina e Carlos admitem que foram enviados para uma missão delicada: são vigilantes na estação Chacao do metrô, coração da resistência ao chavismo em Caracas. “Riem de mim dizendo, ‘cuidado, os marines vem aí’”, lembra Carolina. “Nos insultam, gritam para nós, nos chamam de chavistas e até me jogaram excrementos”, diz o sargento de 73 anos.

Jesús Torres posa com seu uniforme de miliciano em sua casa do bairro União, em Caracas.
Jesús Torres posa com seu uniforme de miliciano em sua casa do bairro União, em Caracas.Andrea Hernández (El País)

Com 14% de apoio comparado aos mais de 60% que Juan Guaidó tem, segundo a empresa Datanalisis, o poder de Maduro se baseia hoje em três pilares: o exército, as milícias e os coletivos. Dirigida pelo general Vladimir Padrino López, as Forças Armadas Bolivarianas têm entre 136.000 e 140.000 soldados. Apesar das deserções, o exército se manteve fiel a Maduro graças ao gulag interno, às nomeações –têm mais generais do que a OTAN– e aos negócios em que atua, que vão do tráfico de produtos alimentícios a aparelhos de barbear. Maduro aplicou a mesma estratégia do castrismo, em que o exército controla de hotéis até uma companhia aérea. A segunda linha de defesa é formada pelos “coletivos”, grupos paramilitares de encapuzados que semeiam o terror onde quer que apareçam. São muito eficazes para dissolver distúrbios onde a polícia está sobrecarregada, como aconteceu recentemente em Ureña, na fronteira com a Colômbia, durante a frustrada tentativa de Guaidó de fazer entrar a “ajuda humanitária”.

O terceiro pilar da resistência “cívico-militar” são as milícias, um corpo civil inventado por Chávez em 2007. De acordo com a dialética bolivariana, depois do golpe de 2002, quando milhares de pessoas desceram das colinas até o Palácio de Miraflores, Chávez percebeu que não bastava confiar no exército, por isso era necessário adestrar a população em tarefas de tiro, pensamento nacional e disciplina militar.

Durante seu treinamento, Carolina disparou cinco vezes “e depois chorei”, relembra a primeiro-cabo, que reconhece que a milícia a “empoderou como mulher” e a fez “perder a timidez na hora de abordar questões políticas” ou de se dirigir a alguém. Sua arma atual é um bastão extensível, mas sabe que existem armas em depósitos se for necessário.

“Se eles ousarem nos invadir encontrarão um povo mobilizado e treinado disposto a defender com seu sangue cada centímetro da Venezuela”, ameaçou Maduro quando atribuiu o maciço apagão elétrico em todo o país a um ataque de raios catódicos lançado pelos Estados Unidos. Em resposta à agressão, e sem alterar sua versão, Maduro enviou a milícia para “defender a pátria”, limpando, cortando e podando o mato nos arredores de cada central elétrica. As Nações Unidas e o Colégio de Engenheiros atribuíram o apagão ao abandono das instalações em todo o país.

A realidade atual é que a milícia é uma gigantesca agência de colocação e a maneira mais rápida de ter acesso aos planos sociais. Aposentados, desempregados, donas de casa, fanáticos da causa bolivariana ou nostálgicos do “comandante eterno” treinam toda semana em bases militares. Os vídeos vazados mostram uma tropa que coxeia, desfilando com uma vassoura, incapaz de se por de acordo para defender uma posição estratégica.

Diante da zombaria generalizada e do aumento da tensão, nos últimos anos intensificaram os treinamentos e incorporaram tarefas de “inteligência” e controle social, no estilo dos Comitês de Defesa cubanos, apontando os traidores da revolução. São os tentáculos do regime bolivariano nas profundezas dos bairros para denunciar os “traidores da pátria” em troca de caixas de alimentos conhecidas como CLAPS (Comitê Local de Abastecimento e Produção).

“Entramos na milícia porque não há trabalho”, explica Jesús Torres, de 71 anos, em sua casa em Petare. De acordo com esse avô de cinco netos, “o melhor é conhecer pessoas tão humildes, que passam pelos mesmos problemas”. Mas o que ele mais odeia é “o desprezo dos superiores e da população”, acrescenta enquanto dá um salto por uma janela para mostrar o bom estado físico em que se encontra.

“A Milícia Bolivariana é usada para adubar o discurso de intimidação e para lotar os discursos Maduro”, diz Rocío San Miguel, especialista nas Forças Armadas e autora do relatório mais completo realizado sobre o corpo. De acordo com San Miguel, o número real de milicianos não chega nem remotamente ao milhão de pessoas e seu tamanho, “de forma permanente”, é de 20.000 pessoas, embora distribuídas de forma muito eficaz nos 335 municípios da Venezuela. “Outra coisa é que se adestrem funcionários públicos e que, portanto, sejam contabilizados como milicianos”, matiza, “mas o resto, na realidade, está vigiando hospitais ou o metrô e incorporá-las ao manejo de sistemas de guerras é uma irresponsabilidade”.

Uma frase atribuída a Simon Bolívar descreve a Colômbia como uma universidade, o Equador como um convento e a Venezuela como um quartel. Sob o Governo de Maduro, o velho ditado da época colonial está prestes a se tornar realidade caso seja consumada a promessa de recrutar dois milhões de milicianos, quase o mesmo número de venezuelanos que fugirão do país este ano.

Carolina González ajuda a usuários do metro de Caracas.
Carolina González ajuda a usuários do metro de Caracas.Andrea Hernández (El País)

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