Grupos que sustentam Maduro serão principal desafio a qualquer futuro governo na Venezuela
É erro grave presumir que queda de Maduro e promoção de eleições livres seriam garantia para resolver problemas do país vizinho
Nos últimos anos, a maioria dos comentaristas internacionais cometeu dois erros ao analisar a situação da Venezuela. Em primeiro lugar, subestimaram Nicolás Maduro, presidente desde 2013, erroneamente presumindo que ele seria incapaz de se manter no poder por muito tempo. Por exemplo, em 2017, o analista Ian Bremmer previu que Maduro cairia em breve, argumentando, entre outras coisas, que o presidente não tinha o carisma de Hugo Chávez. Ignorou, porém, o fato de que carisma raramente é decisivo para prever quanto tempo um ditador permanece no cargo. Com o apoio das Forças Armadas, da polícia e das milícias informais, a estratégia destrutiva, porém sofisticada de Maduro permitiu-lhe sobreviver apesar de arruinar a economia do país e levar quase 10% da população a fugir. Embora esteja fragilizado pela pressão internacional, Maduro ainda pode contar com o apoio do aparato de segurança venezuelano.
Portanto, não podemos descartar a possibilidade de Maduro se converter no Mugabe da Venezuela. O ditador africano governou o Zimbábue de 1980 a 2017 e quebrou seu país, até a década de 1990 um dos mais prósperos do continente. Nesse caso, Maduro se manteria no poder, e a Venezuela se tornaria um Estado falido cada vez mais isolado do resto do mundo, com um exército corrupto controlando os poucos recursos que restam. Casos similares têm demonstrado que o caos e a miséria podem, paradoxalmente, acabar fortalecendo seus governos, pois a situação força as pessoas a se concentrarem na sobrevivência ou na fuga, reduzindo o número daqueles que têm meios para protestar. Na Venezuela, as sanções econômicas ainda dão ao governo a desculpa ideal para culpar atores externos, apesar de a crise econômica ter começado muito antes das sanções impostas pelos Estados Unidos.
O segundo erro de muitos analistas é acreditar que a estratégia de destituir Maduro e organizar eleições livres resolveria todos os problemas da Venezuela. Nada poderia estar mais longe da realidade. Ainda que o fim do chavismo seja uma condição necessária, ele não é suficiente para reconstruir o país. Afinal, quem vencer Maduro enfrentará um problema de extrema complexidade: como lidar com e assegurar o apoio dos diferentes grupos armados que hoje desfrutam de uma forte influência política e vastos privilégios econômicos?
Apesar de a comunidade internacional se referir às "Forças Armadas venezuelanas" como um grupo coeso, Maduro criou, na verdade, uma rede de facções cujos incentivos e interesses “não podem ser abordados com uma única estratégia”, como recentemente observou o cientista político Javier Corrales. Como ele mostra, três dessas facções se destacam.
Primeiro, as Forças Armadas (que incluem, entre outros, a temida Guarda Nacional Bolivariana e a Força Aérea) são o grupo que mais se assemelha a um exército tradicional, mas seus generais hoje controlam tanto a economia legal (incluindo empresas estatais) quanto a ilegal (como o tráfico de drogas). Eles estão interessados em manter sua riqueza e obter ampla anistia que os proteja de processos judiciais caso o governo Maduro caia.
Segundo, a Polícia Nacional Bolivariana (PNB) e, entre seus diversos segmentos, as Forças de Ações Especiais (FAES) atuam como verdadeiro esquadrão da morte, pronto a atacar adversários políticos e até a extorquir viajantes na estradas, como pode testemunhar qualquer pessoa que tenha viajado de carro pelo país ao longo dos últimos anos. Tanto o primeiro quanto o segundo grupo incluem elementos altamente ideologizados, que genuinamente acreditam na Revolução Bolivariana — e estariam dispostos a pegar em armas no caso de uma intervenção militar estrangeira.
O terceiro grupo são as milícias, conhecidos como "colectivos", civis (muitas vezes adolescentes) pouco organizados e sem hierarquia, que receberam armas, motocicletas e alimentos do regime para atacar manifestantes e criar uma atmosfera generalizada de terror.
Tanto o segundo quanto o terceiro grupo fazem o serviço sujo do regime, mas a diferença entre eles é que os “colectivos” sabem que não se beneficiarão de nenhuma anistia. Como qualquer grupo mercenário, eles não têm ideologia, mas representarão um grande desafio para quem quer que suceda Maduro. A menos que possam ser rapidamente integradas à economia formal — um cenário altamente improvável —, as milícias serão absorvidas pelo crime organizado, com consequências diretas para a estabilidade do país.
Por isso, o sucessor de Maduro precisará ser, acima de tudo, um líder pragmático disposto a frustrar expectativas pouco realistas da população e da comunidade internacional. Ainda deve considerar, segundo Corrales, admitir o papel-chave do aparato de segurança oficial em um governo de transição e mesmo posterior. Isso inclui adotar uma política de anistia ampla, que inevitavelmente geraria forte resistência entre muitos na Venezuela e no exterior, defensores de uma transição mais “limpa” para a democracia. Reorganizar as Forças Armadas e a Polícia Bolivariana, assim como encontrar uma solução para os "colectivos", levará pelo menos uma década e exigirá sistemática ajuda externa.
É aqui que as Forças Armadas sul-americanas terão um papel crucial. Idealmente, o colapso da Venezuela deveria marcar o início de uma cooperação mais ampla das Forças Armadas na região, a qual poderia envolver, entre outras iniciativas, exercícios militares conjuntos, missões coordenadas para lidar com desastres naturais e participação mista em missões de paz da ONU. O objetivo deveria ser aumentar a pressão sobre as Forças Armadas da Venezuela para permanecer dentro de seus quartéis sob qualquer futuro governo civil.
Embora essa cooperação tenha apenas impacto limitado e indireto nas Forças Armadas venezuelanas, é a melhor contribuição que o Brasil e seus vizinhos poderiam dar à Venezuela no longo e difícil caminho à redemocratização.
Oliver Stuenkel é professor adjunto de Relações Internacionais na FGV em São Paulo, onde coordena a Escola de Ciências Sociais em São Paulo e o MBA em Relações Internacionais. Também é non-resident fellow no Global Public Policy Institute (GPPi) em Berlim e membro do Carnegie Rising Democracies Network.
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