Diretora do suplemento feminino de jornal do Vaticano se demite por tentativas de calá-lo
Lucetta Scaraffia e equipe saem apontando retorno à cultura da “mulher obediente” dentro da Igreja. Também lamentaram a impossibilidade de abrir um “diálogo livre e corajoso”
O Vaticano e o Papa sofreram uma nova baixa que questiona diretamente a abertura da Igreja às mulheres e à liberdade de expressão. A diretora do suplemento mensal feminino do L’Osservatore Romano, Lucetta Scaraffia, e toda sua equipe de 11 mulheres se demitiu de seus cargos. Em sua despedida, sete anos depois de lançar o primeiro número, a redação denuncia a tentativa de “silenciar uma iniciativa útil” e um retorno ao clericalismo e à cultura de “mulheres obedientes”. A demissão isola ainda mais o pontificado de Francisco, que perde simpatias de ambos os lados do espectro ideológico e social.
A diretora do suplemento Mulheres, Igreja, Mundo e sua redação escreveram uma carta ao Papa para explicar seus motivos. Algo que também detalharão no número que sairá na próxima segunda-feira, mas que já foi antecipado. Denunciam que sua linha editorial “não encontrou o apoio da nova direção do L’Osservatore Romano” depois do repentino afastamento do diretor anterior, Giovanni Maria Vian, em dezembro passado, e que “se voltou para a seleção das mulheres de cima, para a escolha de colaboradores que asseguram obediência e para renunciar a qualquer possibilidade de abrir um verdadeiro diálogo, livre e corajoso”.
As jornalistas disseram em sua carta ao papa Francisco que jogaram a toalha porque se sentem rodeadas de “um clima de desconfiança e deslegitimação progressiva, com um olhar sem estima e sem crédito para manter a colaboração”. “Com o fechamento do Donne Chiesa Mondo se rompe, pela primeira vez, uma experiência nova e excepcional para a Igreja: um grupo de mulheres que se organizaram que forma autônoma, que votaram entre elas a incorporação de novas colaboradoras, que puderam trabalhar no coração do Vaticano e da comunicação da Santa Sé com inteligência e coração livres, graças ao consentimento e apoio de dois papas.”
Scaraffia conta a este jornal parte dos motivos de sua renúncia e a de uma heterogênea equipe onde nem todas as suas integrantes eram católicas. “Se tinham dúvidas sobre nossa linha editorial, deveriam ter proposto debates abertos em vez de adotar no jornal [na publicação diária do L’Osservatore Romano] uma linha completamente oposta à do suplemento. Nós nos sentido desautorizadas, nos deslegitimavam”, diz ela. A ex-diretora da publicação prefere não citar exemplos. Mas há 10 dias saiu no L’Osservatore uma resenha de Monica Mondo, jornalista próxima à nova equipe de comunicação do Vaticano, que jogava por terra o documentário sobre os abusos contra freiras — um tema que tinha se tornado uma bandeira do Donne, Chiesa, Mondo. As declarações do Papa na última cúpula sobre os abusos, onde disse que “qualquer feminismo termina sendo um machismo de saia”, tampouco ajudaram.
O suplemento, criado durante a frutífera direção do anterior chefe da publicação do Vaticano, Giovanni Maria Vian, foi uma publicação contracultural dentro dos muros de uma instituição masculina. Scaraffia impulsionou a publicação de grandes pautas, incluindo o longamente silenciado abuso às freiras por parte de sacerdotes. Esta reportagem, que trouxe à luz uma realidade incômoda para a Igreja, caiu como uma bomba na Santa Sé. Justamente quando a Igreja começava a confrontar o tema do abuso contra menores, deparou-se com um novo assunto para o qual não estava preparada.
O próprio diretor da publicação, Andrea Monda, respondeu nesta terça à demissão da equipe e negou que o suplemento vá deixar de ser publicado. “Nestes poucos meses desde que fui nomeado diretor, garanti a Scaraffia e à equipe editorial de mulheres a mesma autonomia e a mesma liberdade que caracterizaram a revista mensal desde seu nascimento, me abstendo de interferir de qualquer maneira na criação do suplemento mensal do jornal”. Monda negou qualquer tipo de ingerência e disse que o suplemento feminino do L'Osservatore Romano “não se interromperá” e continuará “sem nenhum tipo de clericalismo”.
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