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Os ‘Everests’ do interior da Terra que os terremotos ajudaram a mapear

Estudo sísmico permite fazer o primeiro mapa detalhado do manto, a 660 km de profundidade. “Trata-se de uma relíquia de quando a Terra virou um planeta propriamente dito", explica pesquisador

Os terremotos de magnitude 7 ou superior, como o do México em 2017, permitem realizar estudos desse tipo
Os terremotos de magnitude 7 ou superior, como o do México em 2017, permitem realizar estudos desse tipoGetty
Nuño Domínguez
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O eco de grandes terremotos permitiu explorar uma fronteira que está a 660 quilômetros abaixo do solo e é uma das regiões mais desconhecidas do planeta.

Nos livros escolares, o interior da Terra está dividido em três camadas – crosta, manto e núcleo – cujos limites são lisos e perfeitos como a superfície de uma esfera. Agora, sismologistas dos Estados Unidos e China analisaram dados de 13 terremotos de grande magnitude e concluíram que a realidade é bastante diferente da ensinada no colégio.

As ondas sísmicas dos tremores mais poderosos percorrem o interior da Terra, ricocheteiam na crosta terrestre no outro lado do globo e retornam à zona do epicentro, onde são registradas por dezenas de sismógrafos. Se os limites entre as camadas terrestres fossem lisos, os sinais ricocheteados chegariam mais ou menos ao mesmo tempo. Mas recentemente os sismógrafos mostraram importantes irregularidades exatamente a 660 quilômetros de profundidade, na fronteira entre o manto superior e inferior. Pela primeira vez, essa fronteira – que antes só podia ser estudada em escalas de centenas ou milhares de quilômetros – foi topografada em escalas de 10 quilômetros.

Representação das camadas da Terra
Representação das camadas da Terra

O manto concentra 80% de todo o volume da Terra. Ainda há muitas perguntas por responder sobre sua composição e comportamento, dado que é impossível chegar até ele a partir da superfície. “O poço mais profundo já escavado [o poço superprofundo de Kola, na Rússia] chegou a 12 quilômetros de profundidade”, explica Jessica Irving, sismologista da Universidade de Princeton (EUA) e coautora do estudo, publicado nesta sexta-feira, 15, na Science. “Se você tentar ir além disso, a pressão acaba derrubando as paredes do poço. Nós tentamos estudar uma zona que está 50 vezes mais profunda, onde as temperaturas são de 1.600 graus e a pressão é milhares de vezes maior que na superfície”, diz Irving. Em estudos anteriores, haviam sido encontradas irregularidades topográficas similares e ainda mais profundas, bem na fronteira entre o manto e o núcleo da Terra.

Graças ao estudo das ondas sísmicas, a pesquisa revelou que o limite entre as duas camadas do manto tem 10 vezes mais relevo que a superfície terrestre. “Algumas das montanhas que vemos são tão altas como o Everest”, salienta Irving.

Evidentemente estas não são montanhas comuns. O manto superior e o inferior são feitos de rocha sólida, mas com pressões e densidades diferentes, algo equiparável ao que acontece entre o ar e a rocha da superfície. As ondas sísmicas viajam mais rapidamente pelo manto inferior, mais profundo, do que pelo superior.

No centro, gráfico que representa o relevo entre o manto inferior (verde escuro) e o superior (verde claro). À esquerda, o ponto mais alto da superfície, o topo do Everest, e o mais baixo, a fossa das Marianas
No centro, gráfico que representa o relevo entre o manto inferior (verde escuro) e o superior (verde claro). À esquerda, o ponto mais alto da superfície, o topo do Everest, e o mais baixo, a fossa das Marianasscience

Por enquanto, a equipe conseguiu cartografar apenas uma pequena parte desta fronteira, a que fica exatamente oposta aos epicentros de grandes terremotos como o registrado na Bolívia em 1994, de magnitude 8,4, e no mar do Okhotsk em 2008, com uma magnitude de 7,2, explica Irving. Os terremotos mais interessantes para esses estudos são os de magnitude igual ou maior a 7.

O trabalho aponta que as duas camadas do manto têm composições químicas diferentes, uma questão crucial para saber se o manto se move como um todo ou se suas duas camadas funcionam separadamente e estão mais ou menos isoladas da passagem de material fundido do núcleo.

“Nosso trabalho sugere que o intercâmbio de material entre a Terra profunda e a superficial está bloqueado”, diz Sidao Ni, pesquisador do Instituto de Geofísica da China e coautor do estudo. As grandes montanhas do manto seriam as causadoras, embora a equipe também tenha detectado zonas planas onde é possível que haja conexão entre as camadas. “Desta forma, ambos os modelos têm algo de correto, e a Terra parece estar em um ponto intermediário entre ambos”, acrescenta.

A geofísica Christine Houser, do Instituto de Tecnologia do Japão, ressalta a importância do estudo. Se realmente as camadas mais profundas do manto não chegarem nunca à superfície, o interesse da descoberta é enorme. “O intercâmbio de rocha e calor entre as duas camadas do manto é determinante para a evolução do planeta, mas se sabe muito pouco sobre essa fronteira em pequenas escala”, escreve. “O manto inferior é uma relíquia de quando a Terra virou um planeta propriamente dito a partir de um disco de pó”, observa.

Estudos desse tipo só são possíveis graças aos terremotos de maior intensidade. A equipe quer agora analisar mais sinais de outros sismos captados em todo o planeta, para começar a compor um mapa completo dessa inalcançável fronteira da Terra.

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