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Médicos longe de Cuba, livres no Brasil

Impedidos de retornar ao seu país, cubanos desertores enfrentam questões que vão da distância familiar à luta para exercer a profissão no Brasil após deixarem o Mais Médicos

Beatriz Jucá
Médicos cubanos durante uma sessão de treinamento em uma clínica de saúde em Brasília.
Médicos cubanos durante uma sessão de treinamento em uma clínica de saúde em Brasília.Eraldo Peres (AP)
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A médica María Belén (nome fictício), de 31 anos, embarcou no avião ansiosa para encontrar o Brasil retratado nas novelas da Globo que havia assistido durante a infância em Cuba. Era 2014. Naquele ano, antes de entrar na pior recessão econômica da história recente, o Brasil ainda era visto pelos cubanos como uma espécie de "Alemanha latinoamericana" e havia uma simpatia especial na ilha pelos governos de esquerda do PT. Belén, que naquele período estava em missão na Venezuela, resolveu se apresentar em uma seleção do governo cubano para uma nova missão no Brasil. Os profissionais disponíveis em Cuba já não eram suficientes para suprir a demanda do programa Mais Médicos. Quando foi aprovada, ela sabia que o salário não chegaria aos 3.000 reais, mas pelo menos não ficaria mais submetida ao toque de recolher das 18h que havia na Venezuela, ganharia mais do que em Cuba e se sentia desafiada pelo discurso dos governos de revolucionar a atenção primária.

"Quando chegamos, foi muita decepção. O que passava nos jornais de Cuba era um Brasil diferente, a Alemanha da América Latina. Eu vim participar de um programa que ia revolucionar a atenção primária, mas quando cheguei entendi que o Mais Médicos era um contrato pra você trabalhar onde o brasileiro não quer ir porque é longe ou isolado", conta. A falta de estrutura dos postos de saúde principalmente nas cidades pequenas — segundo ela, diferentes das unidades cubanas, que já contam com áreas para realização de alguns exames — deixaram a impressão em alguns cooperados de que o processo de atendimento público de saúde brasileiro era mais longo e ineficaz. Apesar dos problemas, eles estavam em uma missão humanitária e valorizavam isso. "Sabemos que demos uma ajuda enorme ao povo brasileiro. Tenho amigos médicos que trabalhavam 15 dias indo de barco aos lugares para atender gente que nunca havia sonhado em ter médico antes", diz Belén.

Logo que chegou ao Brasil, em março de 2014, ela ficou com outros médicos cubanos por dois meses em um hotel em Fortaleza, no Ceará, para uma espécie de integração, com aulas para explicar os protocolos do trabalho no Brasil e a distribuição dos médicos nas cidades. "Até aí, tudo ainda era maravilhoso", conta Belén, que foi alocada para a periferia de São Paulo. Os 15 dias de aulas de português em Cuba não foram suficientes para dar a Belén a segurança com o novo idioma. Então, ela continuou assistindo as aulas aos sábados ofertadas pelo programa Mais Médicos para melhorar o português dos estrangeiros. Nos seis meses de duração do curso, se apaixonou pelo professor brasileiro. E casou-se com ele.

A vida na capital paulista mudou a percepção de Belén sobre o país. "Me chamou muita atenção a quantidade de pessoas em situação de rua, eu ficava pensando no que havia acontecido com eles", conta. Decidiu então perguntar à recepcionista do hotel porque havia tanta gente na rua. "Ela riu quando eu perguntei e me contou que eram pessoas sem casa, que alguns usavam drogas. Foi um choque de realidade", afirma. Belén conta que também os colegas, especialmente os que foram direcionados às periferias e ao Nordeste, ficaram impressionados com as precárias condições sociais da população.

"Foi difícil pra gente assimilar essa realidade. Cuba é um país muito pobre, mas se encontramos alguém em situação de rua é algum paciente psiquiátrico. Temos o setor que chamamos de segurança social que cuida muito bem disso. Idosos sem família têm direito a abrigos e não há criança pedindo dinheiro na rua em Cuba", compara. O problema do país é a restrição das liberdades individuais impostas pelo governo ditatorial.

Condições no Brasil

Quando deixaram Cuba, os médicos conheciam as condições salariais que teriam no Brasil. Sabiam que o governo ficaria com 70% do valor para investir em educação e saúde no país natal, mas a falta de isonomia em relação aos demais médicos do programa incomodava. Primeiro, eles conseguiram que a ajuda de custo das prefeituras para moradia e alimentação fossem pagas em dinheiro, dando mais liberdade e a possibilidade de enviar parte do salário para as famílias em Cuba. Mas a diferença salarial inclusive em relação a outros médicos estrangeiros — que ganham cerca de 11.000 reais integrais — incomodava, além do fato de o convênio exigir exclusividade, de maneira que os cubanos não poderiam dar plantões como os outros médicos, nem sequer fazer algum trabalho voluntário fora da carga horária nos postos de saúde.

Belén queria a liberdade que não poderia ter no seu país. Por isso, decidiu fazer o exame Revalida enquanto ainda estava atuando no convênio do Mais Médicos, em 2016. "Com o exame, eu estaria livre daqueles 2.900 reais e poderia ganhar o mesmo salário que um médico brasileiro, além de fazer outras coisas. Eu queria a liberdade de fazer o que quisesse e ganhar o salário igual ao de todo mundo", explica. A médica, que cursou seis anos de medicina em Cuba e mais três de especialização em saúde da família — uma exigência do governo cubano para participar do programa, passou nas duas fases do Revalida, mas o êxito na prova não encerrou seus problemas.

Primeiro, houve um empecilho com a exigência de que ela apresentasse o diploma autenticado pelo Consulado do Brasil em Havana. "Casualmente, meu diploma sumiu na alfândega. Cuba é um mundo surreal. Lá tem uma lei que proíbe fazer a segunda via do diploma. O que tenho hoje é uma declaração de que sou médica e que meu diploma não está cassado, que tenho que cuidar como se fosse a carta de independência de um país", reclama. Belén havia trabalhado até o fim do contrato do Mais Médicos, mas como não se apresentou em Cuba para ser liberada da missão, agora é considerada desertora e não pode retornar ao seu país em até oito anos. Fora do Mais Médicos, já não pode ir visitar a família que continua na ilha, como fez durante as férias que teve no programa. "Eles ainda não puderam vir. Tenho medo de que o presidente Bolsonaro retire a embaixada do Brasil de Havana e dificulte os trâmites burocráticos e a permissão do governo cubano pra eles virem. Dois amigos médicos conseguiram ir trabalhar nos Estados Unidos, mas como Cuba não deixava as pessoas irem diretamente pra lá, a mãe deles tinha que vir ao Brasil para daqui ir ver os filhos lá", explica.

Com o Revalida e casada com um brasileiro, Belén conseguiu o direito de permanecer e exercer a medicina. Há alguns meses, trabalha por conta própria dando plantões em hospitais e em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) na zona sul de São Paulo. Mesmo assim, sua situação ainda tem entraves. "Não tenho do que reclamar do Brasil, mas agora não tenho outra escolha que não seja ficar aqui. Estou sem passaporte brasileiro porque Cuba não me dá a declaração de antecedentes penais para me naturalizar aqui", conta.

O médico cubano Juan Carlos (nome fictício) também decidiu permanecer no Brasil após concluir sua missão no Mais Médicos, mesmo sabendo que seria banido de Cuba por oito anos e que não poderia exercer a medicina livremente no país, sem o Revalida. Ele se prepara para prestar o exame no próximo ano e tentar se recolocar no mercado de trabalho após deixar o Mais Médicos em 2017. Por enquanto, faz um mestrado na área de Ginecologia e Obstetrícia. Mas não é apenas a sensação de mais liberdade que o mantém no país. Quando veio de Cuba, Juan Carlos foi alocado em um município do interior de São Paulo, onde conheceu a esposa que também atua na área da saúde. O casal teve duas filhas.

"Hoje não trabalho como médico, mas minha decisão foi até simples. Abandonar minha família aqui nunca foi uma opção, e ao término do contrato voltar para pedir a liberação e aguardar o tempo que o governo cubano estimar conveniente sempre foi inaceitável para mim", conta. Agora, ele mantém contato com os familiares que seguem na ilha apenas por e-mail e por Whatsapp, que passou a ser permitido pelo governo cubano recentemente.

A dificuldade de permanecer no Brasil

Depois que o governo cubano decidiu encerrar a parceria do Programa Mais Médicos e o presidente eleito Jair Bolsonaro disse que daria asilo aos profissionais que decidissem permanecer no Brasil, o advogado André de Santana Corrêa contou em diversas entrevistas à imprensa que tem recebido uma série de ligações para representá-los. Segundo ele, há 150 processos em curso de cubanos que lutam na Justiça para clinicar livremente no Brasil. A Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) também passou a oferecer nesta terça-feira assistência jurídica gratuita para os médicos cubanos que queiram pedir asilo ou refúgio no Brasil por perseguição política. O diretor da entidade, Uziel Santana, diz que nos primeiros dois dias da iniciativa atendeu a cerca de 30 médicos cubanos, em missão no Brasil e em outros países da América Latina, que pretendem atuar no Brasil.

"Muitos reclamam do fato de não receberem o salário integral do Programa Mais Médicos. Outros afirmam que as condições de vida em Cuba são muito precárias. Há também aqueles que afirmam que seus familiares têm sido ameaçados pelo governo cubano caso eles abandonem o programa. Alguns já constituíram família no Brasil e, por isso, não desejam regressar à ilha", afirma Uziell Santana.

Conforme informou o governo de Cuba em um comunicado aos cooperados, os médicos casados com brasileiros que tenham tido o contrato renovado no programa poderão permanecer no Brasil, mas todos os demais devem retornar. O EL PAÍS tentou entrar em contato com o governo cubano para saber se há condições ou prazos para essa permanência, mas não conseguiu retorno. Alguns cooperados ouvidos pela reportagem temem represálias. A decisão de permanecer no Brasil não é fácil: não há nenhuma garantia de que os profissionais fiquem nos municípios em que estão hoje. Para seguir no programa, eles precisam se inscrever no edital que será lançado pelo Ministério da Saúde nos próximos dias para preencher as vagas não ocupadas por médicos brasileiros. "Os que estão em São Paulo, por exemplo, dificilmente conseguirão ficar. Muitos têm famílias e estão muito abatidos", diz Belén.

Em um primeiro momento, o Ministério da Saúde admite que não exigirá o Revalida (exame exigido a todos os médicos que não sejam formados no país fora do programa Mais Médicos) no edital. A exigência do exame foi uma das principais críticas ao programa Mais Médicos, desde o lançamento do programa no governo de Dilma Rousseff. O presidente eleito Jair Bolsonaro chegou a questionar a preparação dos médicos cubanos e condicionar a exigência do Revalida para a permanência deles no Brasil. Anunciado pelo presidente eleito como novo ministro da saúde, o deputado Luiz Henrique Mandetta declarou nesta terça-feira que a exigência do Revalida será discutida com autarquias federais que fiscalizam a área. O novo ministro admitiu a possibilidade de uma “avaliação em serviço” da atuação do médico em vez do Revalida, o que abre uma opção de trabalho aos cubanos que decidam desertar e permanecer no Brasil. Quatro dos 16 médicos cubanos que hoje atuam em Embu-Guaçu, a 47 quilômetros de São Paulo, planejam ficar no Brasil e se inscrever no edital que será aberto na próxima semana. Neste município, apenas dois médicos da atenção básica são brasileiros.

O Ministério da Justiça informa que não dá informações sobre quantos médicos cubanos do programa solicitaram refúgio ou asilo porque esses casos correm sob sigilo. Em nota, o Departamento de Migrações e o Comitê Nacional para os Refugiados, órgãos ligados ao Ministério da Justiça, informam que os cubanos que desejam permanecer no Brasil podem solicitar refúgio "caso entenda ser vítima de fundado temor de perseguição em razão de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas em seu país de nacionalidade" ou asilo político (neste caso, cabe ao presidente decidir sobre os pedidos). Neste ano de 2018, o governo brasileiro reconheceu a condição de refúgio a 42 cubanos, mas não há como especificar quantos deles são médicos do programa. Atualmente, 102 refugiados cubanos vivem no Brasil.

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