“Querido Museu Nacional”, crianças enviam cartas de apoio após incêndio
28 alunos de uma escola de Angra dos Reis estimulam envio de mensagens para apoiar a reconstrução
O incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro havia sido controlado há poucas horas. Estarrecidas com a tragédia, a professora Patrícia Dal-Col e a historiadora Martha Myrrha amanheceram naquela segunda-feira, 4 de setembro de 2018, angustiadas com o que significava perder quase todo o acervo do principal museu do país e sensibilizadas com o trabalho de tantos pesquisadores que havia ardido no fogo. Decidiram levar esse sentimento para uma turma do 4º ano da escola pública quilombola Áurea Pires da Gama, onde trabalham, na zona rural de Angra dos Reis (RJ).
Dos 28 alunos que estavam na aula daquele dia, apenas dois conheciam o Museu Nacional. São crianças de 9 a 16 anos, muitas ainda não alfabetizadas e que nunca sequer visitaram um museu, mas que conseguiram se conectar com o descaso com a memória e resolveram prestar seu apoio com cartinhas, poemas e desenhos para os funcionários da instituição. Uma iniciativa que tem incentivado outras crianças e adolescentes a fazerem o mesmo - e que virou uma campanha de afeto ao Museu Nacional no Facebook.
"Meu querido museu, sentimos muito pelo aconteceu", escreve um dos alunos. Em geral, as cartas expressam tristeza pela tragédia e curiosidade para conhecer um acervo que já não está mais disponível. "Eu queria mandar um beijo. Queria visitar o museu, mas não tive chance", afirma outro aluno. Eles tentam transmitir, aos funcionários, alguma esperança de reconstrução. E insistem que ainda há o prédio, no jardim da Quinta da Boa Vista, está intacto. Perguntam quanto custará a reforma e demonstram certa revolta com os recursos precários que vinham sendo destinados ao museu. Entre muitas palavras de lamento, também expressam certa culpa por não haverem visitado antes a instituição. "Me desculpe, sinto muito pelo museu", afirma uma das cartas.
"Tive dificuldade de entender esse sentimento de culpa em um primeiro momento, até que um dos alunos me explicou que era porque nunca havia estado ali e não podia ajudar. Mas não é culpa deles, porque realmente esses estudantes não têm acesso", diz a historiadora Martha Myrrha. A professora oficial da turma, Patrícia Dal-Col, conta que a realidade social da turma nem sempre permite deslocamentos frequentes para o Rio de Janeiro, que concentra a maioria dos museus. "A realidade deles é o bairro. Eu mesma estudei a vida toda em escola pública e tive a oportunidade de ir uma única vez ao Museu Nacional. Além disso, aquele patrimônio está ali, sempre próximo, então também pensamos que sempre podemos deixar pra ir depois", diz.
Apesar do distanciamento, Dal-Col conta que o depoimento de Martha Myrrha sobre a sua vivência com o museu sensibilizou as crianças. "Acho que o nosso ponto de identificação foi quando eu disse que pegou fogo na minha escola, porque eu estudei no Museu Nacional. Eles falaram que me entendiam porque já tinham passado por isso e se identificaram com a tragédia", afirma Myrrha, referindo-se ao incêndio que atingiu a escola Áurea Pires da Gama, há dois anos. “Eu sei o que é passar por isso. Obrigada por me ouvir”, chegou a escrever uma aluna em uma das cartas.
Realidade distante
Essa identificação despertou curiosidade das crianças sobre um mundo até então muito distante para elas. "Tia, é verdade que existia uma múmia lá?", perguntou uma das alunas. "E aquela mulher muito antiga?", questionou outro estudante, referindo-se à Luzia, o crânio humano mais antigo das Américas, destruído no incêndio do Museu Nacional. Foram mais de quarenta minutos conversando sobre o valioso acervo do espaço e a sua importância para o País e para a educação. "No final, perguntei o que a gente poderia fazer, uma redação ou uma carta. A carta foi algo muito significativo. Combinamos de escrever o que estávamos sentindo, porque muitos não sabiam o que tinha no museu. A partir disso, se abriu uma chave de conexão", conta Dal-Col.
O resultado foram 28 cartas, algumas escritas com a letra trêmula de quem está aprendendo a escrever e outras apenas com desenhos do jardim intacto, da fachada do museu ou de objetos que compunham o acervo. "A maior parte da turma não está alfabetizada por completo, mas eles não se preocuparam com isso", diz Dal-Col. As cartas foram entregues três dias depois do incêndio e emocionou a equipe de funcionários, que gravou um vídeo de agradecimento às crianças. A iniciativa ainda estimulou a outras crianças a enviarem mensagens de apoio de outros Estados do Brasil e do exterior. Do Chile, por exemplo, um menino de quatro anos pediu que a tia lhe ajudasse a enviar um desenho para o museu. "Mandemos um dinossauro como o que eles tinham", disse.
O diretor do Museu Nacional, Alexander Kellner, diz que a instituição já recebeu mais de uma centena de manifestações de apoio por cartas, e-mail, desenhos e poemas. "Isso tem sido um combustível muito grande pra que a gente trabalhe para restabelecer a instituição. O museu está vivo, estamos tendo aulas e defesas de dissertações. Seguimos com atividades", declara. Segundo Kellner, o museu estuda a possibilidade de expor o material recebido após o incêndio após a reforma. A historiadora Martha Myrrha diz que as cartas animaram não apenas os funcionários do museu, mas deram uma visibilidade e uma sensação de diálogo importante para os alunos: "Lá na escola, as professoras contam que as outras turmas também querem escrever agora. Essas cartas tiraram a educação patrimonial da impotência que estavam sentindo e devolveram às crianças a vontade de se expressar".
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