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Não é só machismo: o debate levantado por Serena Williams

Tenista americana volta a chamar atenção sobre o tratamento diferenciado a mulheres no esporte, mas, ao mesmo tempo, gera controvérsia ao recorrer a discurso feminista após punição na final do US Open

Serena Williams na final do US Open no último sábado, 8
Serena Williams na final do US Open no último sábado, 8Danielle Parhizkaran (USA Today Sports)
Isabel Valdés

Naomi Osaka venceu a final do Aberto dos EUA (US Open) no sábado contra Serena Williams, a lenda. No entanto, não foi isso que os meios de comunicação destacaram, tampouco o que foi falado na rua ou nas redes sociais. Foi Serena Williams e uma tripla punição. Ela perdeu a cabeça, destruiu a raquete contra o chão e enfrentou o árbitro Carlos Ramos: “Você é um mentiroso, um ladrão!”. “Eu sou mãe, prefiro perder do que roubar!”. “Você me deve desculpas, me deve desculpas!”. “Nunca mais vai apitar um jogo meu! É porque sou mulher e você sabe disso! Se fosse homem, não faria isso!”. “Você está atacando minha personalidade!”.

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Serena transformou uma resposta ruim à pressão de uma partida em uma bandeira feminista; e as advertências do árbitro, que estavam dentro das regras, segundo os especialistas, em um ataque sexista. Há um duplo debate: sobre sua atitude e sobre o machismo no mundo do tênis. Mas, nessa ocasião, eles transcorrem separadamente.

O feminismo se tornou um imenso manto que cobre tudo, com mais força nos últimos dois anos; empurrado pelas ruas, redes sociais, jornais, rádios, televisões, sites, pelo mundo do cinema e da música, por influencers, youtubers e rostos conhecidos de diferentes áreas, em todos os níveis: cultural, político, econômico e social. Mas essa perspectiva, que já faz parte do debate diário, nem sempre é a resposta, não serve para tudo e não deve ser usada como desculpa, de acordo com muitas feministas e especialistas consultadas. Não é um curinga nem dá carta branca a ninguém, a qualquer momento e para qualquer coisa. Mari Ángeles Cabré, diretora do Observatório Cultural de Gênero da Espanha, questiona se Serena Williams gritou naquele momento porque a estavam ofendendo como mulher. Sua resposta é negativa: “O feminismo não é um escudo para deter todos os golpes que a vida nos dá, exige responsabilidade e bom uso”.

Isso nem sempre se faz e essa manipulação do discurso joga contra; em um movimento que cresce e se expande a uma velocidade vertiginosa, que já é maciço e tem alto-falantes capazes de atingir milhões de pessoas ao mesmo tempo, os disfarces não fazem falta. Que no tênis existe discriminação salarial por gênero, discriminação de tratamento, de cobertura da mídia e de cuidado institucional é um fato. Para a militante feminista Amparo Rubiales, a questão racial também não pode ser desprezada. “Quanto Serena teve de resistir por ser mulher, negra, mãe e continuar competindo? Certamente muito mais que os jogadores homens.” Mas isso não pode ser usado para explicar tudo o que acontece na quadra, como argumenta Lola Pérez, feminista, filósofa e assistente social: “As mulheres empoderadas, com uma personalidade tão forte quanto a que ela tem em quadra, devem saber reconhecer quando estão certas e quando estão erradas.” Zua Méndez, do grupo feminista Towanda Rebels, discorda nesse sentido, acredita que este deveria ser mais um daqueles momentos em que se deve dizer: “Vamos acreditar nas mulheres”. “Porque [Serena Williams] está rompendo estereótipos em um esporte que não é nada amigável com elas.”

Serena Williams , a supervisora do circuito feminino do US Open, Donna Kelso, e o juiz Brian Early
Serena Williams , a supervisora do circuito feminino do US Open, Donna Kelso, e o juiz Brian EarlyJULIAN FINNEY (AFP)

Porém, talvez porque haja argumentos, dados e estatísticas suficientes para denunciar um machismo institucionalizado, não é necessário vestir o feminismo com a vitimização nem tornar o discurso uma deriva. Se deixarmos que tudo, como um sistema, se transforme em machismo, corre-se o risco de o movimento perder força e razão naquilo que é consequência de uma sociedade patriarcal. A esse possível efeito se refere Octavio Salazar, jurista e especialista em igualdade: “O que define um comportamento machista é que existe um exercício de dominação ou supremacia de um homem sobre uma ou mais mulheres, e implica em tratamento violento, degradante ou humilhante. Mas não é uma chamada de atenção por descumprimento das regras”. De acordo com Salazar, a busca por igualdade deve evitar a reprodução de comportamentos culturalmente assumidos como masculinos: “Há mulheres que, para se empoderarem, assumem comportamentos furiosos e violentos como são os habitualmente protagonizados pelos homens. Um dos ensinamentos do feminismo é que as mulheres não precisam fazer as mesmas besteiras que os homens”.

Apesar de partir de uma acusação questionável, a queixa de Serena gerou várias discussões necessárias. A do machismo no mundo do tênis, é claro, que ocupa desde a noite de sábado o noticiário internacional e os círculos relacionados ao feminismo; e também outros que se conectam com a abordagem machista ao julgar comportamento das mulheres. Nuria C. Sopena, jornalista feminista e escritora, reflete nessa direção: “Talvez se permita uma explosão de fúria a um tenista e não a uma tenista. Talvez se permita a um tenista perder a compostura, enquanto ela [Serena Williams] é vista como uma mulher um tanto raivosa.” A infantilização da terminologia com a qual se descrevem os gestos ou o tom de uma mulher continua sendo uma constante: os homens são temperamentais e as mulheres, histéricas; os homens ficam com raiva e as mulheres ficam com birra. “Quando uma mulher demonstra suas emoções, ela é ‘histérica’ e punida por isso. Quando um homem faz o mesmo, é ‘franco’ e não há repercussões. Obrigado, Serena, por denunciar essa dualidade. Mais vozes são necessárias para fazer o mesmo”, escreveu Billie Jean King, lenda do tênis norte-americano e ganhadora de 12 Grand Slams, ao sair em defesa de Serena, levando em conta que atitudes semelhantes à da tenista raramente rendem advertências tão rigorosas quando protagonizadas por homens.

Nem a raiva, nem os trejeitos deles deveriam ser socialmente aceitos, nem os delas tão insultados. Se a igualdade é o objetivo, que o caminho para alcançá-la também seja esse, prega Lola Pérez: “Usar a vitimização para fazer uma falsa denúncia de sexismo é uma armadilha. Uma perversão dos valores de igualdade. Não acredito que isso seja algo que tenha a ver com o movimento feminista”. Entre a imagem de vítima ou vilã no embate com Ramos, o fato é que Serena mais uma vez conseguiu holofotes para sua cruzada pessoal em combate ao preconceito. Se por um lado a Federação Internacional de Tênis, comandada pelo ex-jogador David Haggerty, respaldou a conduta do árbitro no episódio, a multicampeã recebeu o apoio de colegas como Martina Navratilova, Victoria Azarenka e Kristina Mladenovic, além do presidente da Associação de Tênis Feminino (WTA), Steven Simon, que comunicou: “A WTA acredita que não deve haver diferenças nos padrões de tolerância às emoções expressas pelos homens e pelas mulheres e está comprometida em trabalhar com o esporte para garantir que todos os jogadores sejam tratados da mesma maneira. Não acreditamos que isso tenha acontecido [com Serena na final do US Open]”.

O que dizem as especialistas

Lola Pérez, feminista, filósofa e assistente social

Serena Williams usa a vitimização de uma maneira bastante perversa; afinal de contas, as mulheres em nossa condição de pessoa podem fazer coisas boas e ruins e o comportamento que estava tendo não era apropriado para as regras do jogo. Árbitro estava no direito de repreendê-la. Acredito que mulheres empoderadas, com uma personalidade tão forte como a que ela tem em quadra, tem de saber reconhecer quando estão certas e quando estão erradas. Não somos Super Woman, embora tenhamos essa visão de Serena, porque é uma grande atleta e é um titã na quadra. Mas uma coisa é ser uma boa atleta e outra é a atitude que pode ter. Roubou todo o protagonismo de sua adversária, que foi quem ganhou – a multa, isso sim, me parece desproporcional [Serena foi multa em aproximadamente 70.000 reais pela organização do US Open]. No campo de jogo, estamos acostumados que os homens façam gestos exagerados, que demonstrem sua agressividade, e não é que nunca aconteça nada, mas parece que os juízes de linha são mais permissivos com eles. Devemos avaliar, por um lado, que ela não teve uma atitude correta e apropriada e ver também como outros homens tampouco a tiveram em outras ocasiões.

Amparo Rubiales, política, advogada e feminista

Eu não assisti ao jogo e nem ao incidente, grave, segundo as crônicas, todas escritas por homens. A multa também é muito severa. Certamente ela se equivocou. No entanto, como escreveu Ana de Miguel, “o patriarcado é manter a ideia de que há tantos feminismos quanto mulheres e que basta que uma mulher diga algo porque ‘ela quer’ para que esse algo seja ‘feminista’ e que todas nós sejamos desqualificadas.” Serena Williams usou sua condição de mulher para se rebelar contra a decisão do árbitro, homem, é claro. Quanto Serena teve de resistir por ser mulher, negra, mãe e continuar competindo? Certamente muito mais que os jogadores homens. E meus sinceros parabéns a Osaka, outra mulher vencedora.

Mari Ángeles Cabré, diretora do Observatório Cultural de Gênero

Que Serena Williams estava de cabeça quente por causa da questão da roupa pós-parto que não a deixaram usar, nós já sabíamos. Também sabemos da longa opressão dos brancos sobre os negros e do ressentimento que ainda existe em muitos deles. Mas que sua relação com as regras do tênis não passe pelos melhores momentos e que o árbitro português seja bem blasé não justifica seu injustificável ataque de fúria, muito menos que se defenda aludindo à sua condição de mulher tratada injustamente. Você grita porque estão te ofendendo como mulher, você grita porque o feminismo lhe dá força para fazê-lo? Não, Serena, o feminismo não é um escudo para deter todos os golpes que a vida nos dá, não é um curinga que serve para toda adversidade. O feminismo exige responsabilidade e bom uso. Como qualquer veículo, ele pode te levar muito longe. Mas, se você o usar mal, você pode se lascar e é isso que aconteceu. Primeiro mandamento: você amará o feminismo acima de todas as coisas. Segundo mandamento: você não pronunciará o nome do feminismo em vão...

Idoya Noain, correspondente nos Estados Unidos do El Periódico

Há vários fatores culturais, muito específicos dos Estados Unidos, que tiveram a ver nesse assunto. Aqui há uma questão racial importante e qualquer coisa pode ser usada como racismo. E Serena é uma lenda, uma das melhores tenistas de todos os tempos. É intocável. Além disso, durante o último ano, a gravidez, o pós-parto e os problemas de saúde que teve e os mais recentes incidentes em relação ao uniforme em Roland Garros elevaram seu status na hora de falar de igualdade. Durante esse tempo, ela deu ênfase aos cuidados de saúde às mulheres negras, algo que, se ela não tivesse feito, nunca teria tido esse impacto. Mas o que aconteceu no sábado não foi sexismo. Ela perdeu a cabeça, é algo humano, mas o transformou no que não era e não recuou, transformou o incidente em um debate de gênero. A discussão hoje nos Estados Unidos é sobre o sexismo no tênis e, sim, isso era necessário e importante, mas não surgiu de uma injustiça real. Naquele momento, Serena Williams talvez estivesse pensando nos direitos, mas, diante dela, estava uma mulher de 20 anos, Naomi Osaka, que a idolatrava e estava enfrentando o seu primeiro Grand Slam no meio de uma quadra cheia de animosidade, que ofuscou seu triunfo.

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