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Braço direito dos Kirchner será delator na 'Lava Jato' da Argentina

Claudio Uberti, homem da máxima confiança do ex-presidente Néstor Kirchner, promete expor rede de corrupção vinculada às obras públicas

Seguidores de Cristina Kirchner esperam a ex-presidenta sair da sua casa, em Buenos Aires, para ir depor, na segunda-feira
Seguidores de Cristina Kirchner esperam a ex-presidenta sair da sua casa, em Buenos Aires, para ir depor, na segunda-feiraReuters
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O caso dos “cadernos da corrupção” já é um tsunami judicial de consequências imprevisíveis. À lista de empresários que confessaram ter pagado propinas em troca de contratos de obras públicas somou-se um ex-alto funcionário do kirchnerismo, o primeiro a selar um acordo de delação premiada. Trata-se de Claudio Uberti, homem da máxima confiança do falecido ex-presidente Néstor Kirchner no Ministério do Planejamento, apontado como o coordenador de uma suposta rede de arrecadação ilegal montada a partir da Casa Rosada. Seu depoimento pode agregar novos detalhes, reveladores, aos já apontados em oito cadernos manuscritos por um motorista do poder que durante 10 anos tomou nota de centenas de deslocamentos que fez com sacolas cheias de dinheiro.

Uberti não integrou a lista inicial de detidos liberada na semana passada pelo juiz Claudio Bonadio, embora seu nome aparecesse nos primeiros cadernos escritos por Oscar Centeno, o motorista de Roberto Baratta, número dois do todo-poderoso ministro do Planejamento Julio De Vido durante os 12 anos de kirchernismo. Centeno mencionou Uberti como dono dos imóveis onde Baratta retirava parte do dinheiro fornecido por baixo do pano por empreiteiras. Bonadio afinal determinou a prisão dele quando outro delator, Carlos Wagner, ex-presidente da Câmara da Construção, disse que Uberti era o articulador de toda a rede por parte do Governo. Depois de permanecer dois dias foragido, o ex-funcionário se apresentou ao juiz nesta segunda-feira, 13, decidido a negociar sua confissão em troca de benefícios judiciais.

O processo soma até agora 10 delatores, mas Uberti é o único que esteve do lado dos recebedores. Sua declaração pode ser determinante, porque, para cumprir sua parte na delação premiada, ele precisa oferecer dados novos que permitam escalar na estrutura de responsabilidades. Bonadio está convencido de que na ponta da pirâmide estiveram primeiro Néstor Kirchner e depois sua viúva e herdeira política, Cristina Fernández de Kirchner. A ex-presidenta apresentou nesta segunda-feira um documento em que acusou Mauricio Macri de usar os juízes para persegui-la politicamente. À tarde, Bonadio expediu um mandado de busca para dois apartamentos no mesmo edifício onde vive Kirchner, propriedade de um empresário que foi próximo ao kirchnerismo, em busca de dinheiro sujo.

A polícia faz buscas em dois apartamentos no prédio onde mora Cristina Kirchner
A polícia faz buscas em dois apartamentos no prédio onde mora Cristina KirchnerAFP

O juiz não encontrou o que procurava, mas teve o cuidado de não ingressar no piso de Cristina Kirchner, que goza de foro privilegiado como senadora. A denúncia de Uberti, entretanto, pode complicar a situação judicial da ex-presidenta. Uberti tem contas pendentes com seus ex-chefes: foi um homem poderoso na estrutura kirchnerista até que caiu em desgraça e foi demitido em 2007 pelo caso “das malas de Antonini Wilson”. O nome faz referência a um empresário venezuelano descoberto quando tentava desembarcar no Aeroparque, o aeroporto de voos nacionais de Buenos Aires, com uma mala carregada com quase 800.000 dólares. O escândalo custou o cargo a Uberti, que viajava no avião privado junto com Wilson e era, na época, muito mais que um empregado de peso no Ministério do Planejamento.

Um embaixador paralelo

Como num filme de espionagem, os argentinos souberam que Uberti agia como “embaixador paralelo” em Caracas, encarregado de coordenar o dinheiro em espécie que o governo de Hugo Chávez, sentado sobre petrodólares, contribuía por baixo do pano para uma campanha eleitoral do seu amigo Néstor. Uberti pagou com seu cargo a descoberta da mala com os dólares, vítima de uma funcionária aeroviária que não estava a par da manobra e agiu segundo o protocolo. Wilson se refugiou nos Estados Unidos, Uberti foi demitido, o caso das malas de dinheiro nunca teve processados, e tudo continuou igual. Até agora.

A memória minuciosa do motorista Centeno revelou o caso de corrupção mais explosivo do qual a Argentina tem memória. Só comparável à Lava Jato brasileira, diferencia-se desta porque os envolvidos argentinos ocuparam cargos num governo anterior, enquanto a investigação brasileira também envolve políticos em exercício do mandato. Mas os empresários envolvidos, quase uma dúzia, controlam ou controlaram empresas vinculadas às obras públicas que antecederam, conviveram e sobreviveram ao kirchnerismo, tanto que muitas delas continuam prestando serviços ao Governo Macri.

Empresários e ex-funcionários públicos são acusado de integrar o “clube das obras públicas”, como foi apelidado esse sistema supostamente concebido na Casa Rosada para beneficiar empreiteiras amigas, distribuindo obras de infraestrutura. Os custos eram fixados arbitrariamente, e uma fatia de 10% a 20% era desviada como propina.

Outro motorista delator

Não há como saber, por enquanto, até onde chegará a onda expansiva da cadeia de denúncias. Uberti terá dados novos para oferecer à investigação e deverá complicar ainda mais seus superiores, como De Vido e Kirchner, se quiser obter os benefícios da delação premiada. A novela iniciada pelos cadernos da corrupção ganha agora o depoimento de outro motorista, ex-colega de Centeno e testemunha, ele também, de como seus automóveis carregavam sacolas cheias de dólares que circulavam entre empresários pagantes e funcionários recebedores.

Guido Antonini Wilson, em uma foto de arquivo
Guido Antonini Wilson, em uma foto de arquivoEFE

Diferentemente de Centeno, o novo colaborador não tem cadernos com suas memórias e preferiu manter seu nome no anonimato. Só se sabe que durante anos conduziu José María Olazagasti, secretário particular de De Vido. A voz pública do chofer é Roberto Costa, senador provincial do Mudemos, a aliança política de Macri. “Na sexta-feira veio com um envelope cheio de informação. São vários os motoristas que vieram me ver e querem que sua identidade seja resguardada até falarem com o juiz. Teve uns 50 Centenos”, disse Costa à imprensa argentina.

Na manhã desta terça, o advogado de Costa, Tomam Farini Duggan, apresentou-se ao juiz Bonadio para lhe comunicar que havia outro delator de peso. Como uma serpente que morde o próprio rabo, o testemunho do motorista complicará Uberti, o delator mais chamativo. O advogado Farini também tirou da gaveta do esquecimento o caso das malas de Antonini Wilson e contou que, naquela tarde em que os quase 800.000 dólares foram apreendidos no Aeroparque, Uberti conseguiu passar por outro lugar com quatro milhões de dólares.

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