Pare e leia um poema #1: uma corrente lírica para Hilda Hilst
EL PAÍS publica um poema por semana até a Flip, em que poeta de Jaú será homenageada

Um texto semanal, um instante para parar tudo e ler um poema. A partir deste momento, o EL PAÍS começa esta corrente semanal em que uma poeta ou um poeta indica o trabalho de outro até o começo da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que homenageará a poeta Hilda Hilst, que nasceu em 1930, em Jaú, no interior de São Paulo, e morreu em 2004. Hilst foi tachada de difícil durante a vida, de autora hermética. Ela própria enxergava essas críticas como resultado do fato de que ela não fazia o que se esperava de uma mulher, não escrevia sobre o que se devia e nem vivia como se devia. A homenagem do evento de literatura vem para colocar as coisas nos devidos lugares.
Para começar a corrente poética, a primeira convidada foi Joselia Aguiar, atual curadora da Flip, que no ano passado chamou atenção ao elaborar uma programação diversa, com grande representação de autoras e escritores negros e negras. Para começar esse primeiro elo da corrente, ela escolheu a poeta e tradutora Josely Vianna Baptista, com seu poema Guirá Nãndu – nome da Constelação da Ema, na cultura Tupi-Guarani –, publicado no livro Roça Barroca, que acaba de ser reeditado pela editora Sesi-SP e será lançado em agosto. Na semana que vem, Vianna, que tem um breve perfil abaixo, escolhe o próximo poeta.
Guirá Nãndu
Para Teodoro (sob a Constelação da Ema, cujas penas são desenhadas por claro-escuros da Via Láctea)
pode que a noite hoje
se furte a amanhecer
a terra desmorone
nos bordos do poente
e outra vez o sol
como antes
não desponte
em busca de outro sol
pode alguém se perder
abandonando o humano
para encontrar seu deus
– o mesmo que ao nascer
deu-lhe um nome secreto
de sua divindade
perfeito e repleto
pode que na viagem
no trajeto disperso
um homem adivinhe
a vereda possível
sem fim, de sol a sol
até que a fome e a febre
o êxtase à flor da pele
a intempérie, a prece
a dança em excesso
transportem o corpo adverso
e o espírito pulse
e respire
e confronte
o mar que o separa
da terra indestrutível
quem sabe o paraíso
que descrevem os antigos
não esteja além do vasto
nevoeiro e sargaço
mas no árduo percurso
vencido passo a passo
sem bússola ou mapa do céu
em pergaminho
talvez além do zênite
que ofusca o caminho
deixando um invisível
roteiro para os olhos
que enfrentam o escuro
entre os dois
crepúsculos
Josely Vianna Baptista é poeta, tradutora e editora. Ela nasceu em Curitiba, no Paraná, em 1957, e vive hoje em Florianópolis. Entre seus livros, estão títulos como Ar, Corpografia, de 1991, editado pela Iluminuras; Los poros floridos, editado no México, em 2002, pela Aldus; Roça Barroca, em que aparece o poema acima e que acaba de ser reeditado pelo Sesi-SP e será lançado em agosto; e da coleção Cadernos Ameríndios, dedicada à cultura de etnias indígenas sul-americanas. Recentemente, ela também criou o site-conceito Na Tela Rutila das Pálpebras.