Boulos: “É hora do MTST ocupar a política. Estamos em uma encruzilhada histórica, não é possível se omitir”
O pré-candidato à Presidência pelo PSOL diz que pretende construir uma nova forma de fazer política, que enfrente o mercado e os bancos, com a participação popular
A trajetória de Guilherme Boulos (São Paulo, 1982) poderia ser confundida com a de qualquer outro jovem de esquerda crescido na classe média paulistana. Filho de médicos, ele entrou no curso de filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e especializou-se em psicologia. No ano passado, concluiu um mestrado em psiquiatria. Mas, diferentemente da maioria dos jovens militantes de esquerda que circulam pelos corredores da fefeleche uspiana, ele não ingressou no movimento estudantil. Preferiu as bases do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), que ocupa terrenos vazios nas metrópoles como forma de pressionar o poder público a disponibilizar moradia para quem não tem casa própria.
Seguindo os passos de Luiz Inácio Lula da Silva, e com a bênção do ex-sindicalista, de quem é amigo, pretende agora levar sua participação para além do movimento social. Filiou-se ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) para disputar a Presidência em outubro. E, assim como o petista antes de ganhar a quarta eleição presidencial que disputava, vai enfrentar o desafio de ser o que tem o discurso mais radical da competição. Sua estratégia será a de apostar no cansaço das pessoas com a velha política e apresentar "uma nova forma de fazer política", lastreada na participação popular. Assim, garante, será possível enfrentar o mercado e os interesses do Congresso Nacional.
Pergunta. Como foi a decisão de se candidatar?
Resposta. Não foi uma decisão apenas individual. Eu atuo no MTST há 16 anos, na Frente Povo Sem Medo, e, cada vez mais, com o agravamento da situação política do país, a política transbordou para as ruas. Para os movimentos sociais se tornou impossível falar apenas da sua pauta específica. Isso nos levou para um debate político mais amplo, que foi criando condições para uma aliança. Foi nos levando a uma aproximação com o PSOL, um partido que manteve uma coerência muito importante. A aliança que nós construímos, entre partido e movimento social, é algo, eu diria, inédito na política brasileira, ao menos no último período.
P. Você não fazia parte da militância do PSOL?
R. Minha relação com o PSOL vem de alguns anos, mas de se encontrar nas lutas. Foi uma aproximação que foi sendo construída com o tempo, mas a filiação ocorreu há poucos meses.
P. Setores do partido inicialmente ficaram insatisfeitos com a sua pré-candidatura. Diziam que não houve diálogo para escolher seu nome e temiam sua proximidade pessoal com o Lula, quando o PSOL vem justamente da crítica ao PT, às alianças e aos problemas éticos do partido. Como vê isso?
R. O PSOL se construiu a partir de críticas ao PT e nós, o MTST, também temos críticas ao PT em nossa trajetória. O MTST nunca fez parte do Governo. Sempre manteve mobilizações nos governos petistas. Aliás, muita gente que estava no Governo com o PT na hora de distribuir os cargos não estava no Sindicato dos Metalúrgicos às vésperas de o Lula ser preso. Nós fomos aqueles que não estávamos no momento de distribuir o poder, mas estávamos solidários no sindicato. Isso diz muito sobre o tipo de esquerda que a gente representa e quer construir. Em relação às questões internas do PSOL, é natural e desejável que todo partido tenha pluralidade. Ao mesmo tempo, o PSOL por suas instâncias tomou uma definição. No dia 10 de março, por mais de 70%, o partido decidiu pela nossa candidatura. E a partir deste momento o PSOL está unido e esta é uma página virada.
P. O MTST é um movimento que sempre se afirmou apartidário. Vocês não temeram que essa proximidade com um partido político pudesse desagradar a base?
R. Nós fizemos um debate amplo e cuidadoso dentro do MTST. Com os 14 Estados em que o MTST está presente, com as coordenações, com a base do movimento. E a definição pela nossa candidatura foi consensual. Foi uma decisão do movimento de compor uma aliança. E o movimento entra por inteiro por entender que estão colocados desafios políticos. Estamos em uma encruzilhada da história brasileira e não é possível se omitir. O MTST entendeu que era o momento de ocupar a política também. De ocupar outros espaços para apresentar outro projeto de sociedade e de país. Isso não prejudica em nada a autonomia do movimento.
P. O MTST foi o primeiro a chegar com a militância na porta do sindicato e você esteve perto de Lula todo o tempo na véspera da prisão dele. Por que houve essa decisão de ir pra lá?
R. Entendemos que o país vive hoje a crise democrática mais grave desde a ditadura militar. É um momento muito preocupante. Uma escalada de violência política que se expressou sobretudo com o assassinato covarde e bárbaro da Marielle Franco, no Rio de Janeiro, que foi uma execução política. Essa crise democrática se expressa ainda com o avanço da militarização da sociedade na política, com a intervenção militar no Rio de Janeiro, com as declarações do comandante Villas Bôas às vésperas do julgamento do STF, e a politização do judiciário. Quando setores do Judiciário não fazem seu papel de forma isenta, para julgar com base em provas, respeitando presunção de inocência e se contaminam por um jogo político partidário, isso é muito grave. E foi isso que aconteceu no julgamento do Lula. Ele foi preso em uma prisão política. Estar em São Bernardo do Campo significava estar do lado certo da história, estar em defesa da democracia brasileira. Defender a liberdade do Lula não é uma defesa que caiba apenas ao PT, é de todos aqueles que são de esquerda e defendem a democracia no Brasil.
P. Você foi sondado pelo Lula para se filiar ao PT?
R. Tenho uma relação de muito respeito com o Lula, de admiração. Construímos uma relação política a partir do MTST. Mas eu tenho as minhas posições e sempre expressei para ele de forma transparente e clara. Inclusive as diferenças que tenho em relação ao PT.
P. Como quais?
R. Não ter enfrentado temas essenciais como uma reforma política, a democratização das comunicações, uma reforma tributária, combate a privilégios do andar de cima. Nunca deixei de colocar isso publicamente, nem em conversas com o próprio Lula. As posições que tenho e que expresso há algum tempo não são encampadas pela maioria do PT. Isso se expressa, por exemplo, na questão das alianças. Depois de um golpe como o que ocorreu, fazer alianças com o PMDB, como se está fazendo em vários Estados, o que para nós desde o princípio era uma política errada, agora para nós é algo completamente inadmissível. O Lula sempre soube dessas diferenças e sempre respeitou isso.
P. Existe algum espaço para uma candidatura única da esquerda nesta eleição?
R. Hoje nós temos uma crise democrática muito profunda e é importante que haja uma unidade democrática. A esquerda precisa ter a maturidade de estar junta nas questões fundamentais. Mas isso não pode significar jogar para baixo do tapete diferenças de pontos de vista, de projetos e de futuro que existem e são legítimas. O pensamento único não deve fazer parte da trajetória de quem quer transformar a sociedade. O que está colocado neste momento é a construção de uma unidade democrática e temos investido em relação a isso.
P. Não pode ser um erro estratégico dividir os votos?
R. Acho curioso quando se fala da pulverização dos votos da esquerda e não se fala da dos votos da direita. A direita tem mais de dez candidaturas hoje no Brasil.
P. Verdade, mas tem Jair Bolsonaro, que é um nome forte e pode chegar ao segundo turno.
R. Há uma quantidade enorme de candidaturas no espectro da direita. Algumas são Temer puro sangue, outras Temer disfarçado, mas todas defendem a política deste Governo que tem 4% de aprovação na sociedade. Não me parece razoável supor que o brasileiro vai colocar no segundo turno duas candidaturas que expressem a política do Governo mais rejeitado da história recente do país. Ao mesmo tempo, reitero: acho que a esquerda tem que discutir construções de unidade e programas. Isso não pode ser fruto de imposições. De aliança por tempo de televisão, de uma velha lógica de fazer aliança. Tem que ser fruto de um debate programático.
P. E quais seriam essas diferenças que impedem uma união neste momento?
R. Queremos pensar um projeto para a próxima geração. Um dos erros da esquerda foi de apenas se organizar ou construir programas e alianças pensando a eleição seguinte. Isso nos deixa vulneráveis em relação às mudanças do cenário político. Tem que ter uma democratização profunda da política brasileira, que aproxime o poder das pessoas. Isso significa colocar o povo no jogo, significa plebiscitos, referendos, conselhos. Formas de participação em que as pessoas não se limitem a apertar um botão a cada quatro anos. O Brasil se tornou ingovernável. Acreditamos que não dá para governar do ponto de vista das transformações sem jogar o PMDB pela primeira vez na Nova República na oposição. Este é um ponto que envolve trazer o povo para efetivamente apitar no poder.
P. E como fazer isso, em um Congresso onde o PMDB tem uma das maiores bancadas, onde há um centrão que tem poder de voto? Como se Governa sem ter a maioria dentro do Congresso?
R. Eleição não é cheque em branco. Não quer dizer que o político eleito pode fazer o que lhe der na telha. Seja o presidente da República sejam os representantes do Congresso Nacional. O povo tem que ser ouvido e consultado permanentemente. Isso faz bem à democracia. Antes que se diga que isso é ilusório, já existe em vários países do mundo. A Suíça é a que mais faz plebiscito no mundo. A Constituição do Brasil prevê isso há 30 anos e só houve dois plebiscitos. Qual é o medo que se tem do povo participar do jogo cotidiano da política? A sociedade tem que estar mais mobilizada, mais atenta ao que está acontecendo. O Congresso não vai abrir mão de seus próprios privilégios. Não quero diminuir a legitimidade do Congresso, nem da Presidência ou de qualquer outro cargo eletivo. Esta representação precisa funcionar. Agora, não podem decidir tudo. Não é cheque em branco. O povo tem que ser escutado e ter o poder de decisão.
P. Mas não é possível se regular tudo por plebiscito e referendo. O cotidiano não é mais complicado do que isso, especialmente em um Congresso cada vez mais conservador?
R. Eu acredito que há espaço para o crescimento do campo progressista neste processo eleitoral. O PSOL está apresentando uma chapa ampla de deputados e senadores no Brasil inteiro. Este Congresso está absolutamente desacreditado. E a renovação que nós esperamos é uma renovação que não seja apenas nominal, mas na forma de fazer política. Depois, vamos colocar as coisas claras na mesa: governar, ter maioria parlamentar, nos termos do Congresso atual significa participar de um balcão de negócios nada republicano. Significa comprar partidos em troca de cargos, ministérios, pedaços em estatais que muitas vezes se transformam em negócios escusos. Este é o modelo de governabilidade. Se alguém disser que vai mudar o Brasil com esse Congresso, negociando novamente, desconfiem. Pra nós, só vale a pena entrar no processo eleitoral se for para fazer algo profundamente diferente disso. Nós entendemos que essa forma é a participação popular. Plebiscitos e referendos são uma maneira, mas também com conselhos de políticas setoriais deliberativos. Um conselho de educação com a participação de professores, estudantes, técnicos da área, que tenha poder deliberativo sobre política de educação também orçamentária.
P. Mas como presidente como seria a sua relação com o Congresso, que ainda assim vai ter que decidir muitas coisas?
R. Temos que separar o joio do trigo. Existem parlamentares efetivamente representativos. Existem parlamentares extraordinários no Brasil que têm um trabalho comprometido com a maioria do povo brasileiro, de reconhecida honestidade, e existem máfias que atuam por meio de parlamentares no Congresso nacional. Nós não vamos nos submeter a máfia alguma, não vamos aceitar negociação do tipo a bancada ruralista não vai dar voto se fizer um decreto de demarcação de terras indígenas. Não vamos nos submeter a esse tipo de chantagem.
P. Se você, então, como presidente, faz uma demarcação de terra indígena e o Congresso trava a pauta, o que você vai fazer?
R. A sociedade precisa ser mobilizada. Agora, para um governo como o nosso ser eleito, isso já é a expressão de uma mobilização da sociedade. Para propostas como a que a gente defende ganhem corpo e tenham condições de ganhar uma eleição no Brasil significa que já houve uma ativação no processo de mobilização da sociedade. Isso começa já. O próprio processo de campanha já tem que começar assim. A nossa campanha vai ser uma campanha de mobilização, um debate de projeto para o país.
P. E você acha que é possível construir isso até outubro?
R. A sociedade está num processo de incertezas, de encruzilhada, o cenário é muito aberto. Tudo é possível. Veja que hoje quem ganha as eleições quando se tira o Lula são os indecisos, os nulos e os brancos. Muito a frente do Bolsonaro, que é colocado como o primeiro nas pesquisas. O nível de indefinição na sociedade, de insatisfação e cansaço com esse sistema político é enorme. Se as pessoas identificarem numa proposta a expressão da nossa indignação com o sistema político, se elas verem naquilo algo que não compactua com aquela velha forma de fazer política e está disposta a fazer de um outro jeito, isso pode, sim, gerar engajamento.
P. Seu discurso lembra muito o do PT e do Lula no início. E Lula perdeu a eleição presidencial três vezes. Em 1998, quando ele disputava com o Fernando Henrique, se dizia que se ele ganhasse os movimentos de moradia invadiriam as casas das pessoas e a classe média entrou em pânico. Você vem de um movimento que ocupa imóveis, que entrou recentemente no tríplex do Guarujá. Não teme que o discurso mais radical e sua atuação política assustem uma camada da população?
R. Nós não vamos fazer campanha guiada por marqueteiro. Isso vai assustar tal setor, tirar voto aqui ou acolá... Francamente, só vale a pena entrar em um processo como esse se for para sair com mais dignidade do que se entrou. Eu não vou abrir mão das bandeiras que eu acredito. O PSOL e essa aliança de movimentos populares não vão abrir mão das suas bandeiras. Aliás, muitas pesquisas mostram que isso não é um passivo eleitoral. Se nós olharmos o cenário eleitoral, vemos que onde a esquerda tem tido sucesso é onde não tem tido medo de dizer o que quer e onde quer chegar. Porque as pessoas estão descrentes desta política da maquiagem, onde os candidatos colocam uma máscara até as eleições e depois tiram e governam para os grandes interesses econômicos. As pessoas percebem quando é um discurso fabricado sobre medida.
Também queria acrescentar que essa campanha vai ser uma oportunidade de quebrar preconceitos. O problema da moradia no Brasil é um escândalo. Nós temos seis milhões e duzentas mil famílias sem casa e mais de sete milhões de imóveis ociosos. Tem mais casa sem gente do que gente sem casa. Nós vamos mostrar para o país que quem ocupa não ocupa porque quer levar uma vantagem, porque é vagabundo e não quer trabalhar, como um certo preconceito difundido no senso comum tenta fazer crer. Uma mãe que leva seus filhos para uma ocupação, pisando no barro, para baixo de lona, não faz isso porque acha bonito. Faz isso porque todo final do mês tem que enfrentar a dura opção entre pagar aluguel e botar comida na mesa. Essa é a realidade de milhões de famílias nas periferias. É preciso desmistificar as ocupações. Na nossa campanha eu não vou em nenhum momento renegar aquilo que eu represento e o que eu fiz nos últimos 16 anos.
P. Então não pensa em fazer um aceno de não sou radical? Um aceno ao mercado como fez a campanha de Lula para que ele vencesse pela primeira vez?
R. Para governar para as maiorias no Brasil é preciso enfrentar o 1%. Não tem outra saída. Na situação em que estamos hoje não tem espaço para se avançar um milímetro em conquistas sociais, em avanços de direitos, em políticas públicas, sem enfrentar os privilégios do 1%. É preciso regular o sistema bancário.
P. A própria Dilma afirmou acreditar que sua derrocada começou pela falta de apoio do mercado. Como vai ser a sua relação com os bancos?
R. Se for para um presidente eleito governar para o mercado, cancela as eleições de uma vez. Deixa o mercado indicar. Reúne os quatro maiores bancos do país e define quem é o presidente do Brasil.
P. Mas você vai ter que conversar com os bancos.
R. Nós podemos conversar com quem for. A questão é: nós não vamos abrir mão de uma política de que banco vai ter que pagar imposto, de reduzir taxa de juros, esse spread bancário criminoso e violento, que é o maior do mundo. Esses privilégios têm que ser enfrentados. Não acho que a Dilma caiu porque fez o enfrentamento aos bancos. Acho que, em parte, ela tenha caído também porque não buscou ter um lastro popular. Para fazer política de enfrentamento com quem sempre mandou no Brasil é preciso estar lastreado. Eu não estou aqui defendendo inconsequências ou dando soluções mágicas, que eu vou chegar lá e vou fazer tudo o que os outros não fizeram. Isso é balela. Mas a forma de fazer os enfrentamentos que são necessários hoje no país é lastrear a política nas maiorias sociais. Em mobilização permanente da sociedade. Temos que levar o debate sobre tributação dos bancos. Este debate não pode ser feito entre o Banco Central, o representante dos banqueiros e o Ministério da Fazenda.
P. E qual seria a linha de sua política econômica?
R. Nossa política é primeiro a do enfrentamento das desigualdades. Uma política para enfrentar o abismo social brasileiro. Dado recente da Oxfam mostrou que seis bilionários têm mais riqueza do que cem milhões de pessoas no país. Isso precisa ser enfrentado. Precisamos de um novo modelo de desenvolvimento. O Brasil viveu nos últimos 30 anos uma reprimarização. Hoje a nossa pauta produtiva e de exportação está mais voltada para agroindústria, mineração, ligada a matérias-primas do que era 30 anos atrás. Nós hoje precisamos de um modelo de desenvolvimento econômico que não seja predatório, que seja totalmente conectado com questões ambientais, que respeite o direito das populações tradicionais. Um modelo que reveja a matriz energética e de transportes no país, que aumente as fontes de energias renováveis. Queremos construir um novo modelo de desenvolvimento, que invista em infraestrutura social. Não apenas para o capital, para a produção.
P. E como fazer isso?
R. Isso passa por uma retomada de investimento público no Brasil. Não se sai do abismo econômico que nós estamos sem investimento público. A ideia de ajuste fiscal que foi aplicada já em 2015, no Governo Dilma com Joaquim Levy, e depois aprofundada de maneira brutal depois do golpe parlamentar, fracassou por completo. Ela pressupõe que reduzir investimento público vai melhorar a situação fiscal. O que nós vimos foi o contrário. Reduzir investimento público fez com que a economia desaquecesse ainda mais, reduzisse a arrecadação e deteriorasse ainda mais a condição fiscal. Esse investimento em estrutura social e políticas públicas é o que pode permitir geração de emprego.
P. E como aumentar os investimentos em um Estado quebrado e com uma dívida pública altíssima que só cresce?
R. A dívida pública do Brasil não é altíssima, é abaixo de todos os padrões internacionais. Está em 74% do PIB. A dívida dos Estados Unidos está acima de 100% do PIB, da maioria dos países europeus é isso. Proporcionalmente aos padrões internacionais, é baixa. Nenhum país do mundo, tratando-se dos países de capitalismo avançado, se desenvolveu sem investimento público e sem endividamento. O problema da alta da dívida brasileira são duas questões: taxas de juros absolutamente fora dos padrões internacionais e a falta de crescimento econômico. A proporção dívida/PIB aumenta quando a taxa de juros para crescimento da dívida é maior do que a taxa de crescimento [do país]. Uma política de crescimento econômico reduz a dívida. Tivemos processo de redução da dívida recente, durante o Governo Lula, aliás com taxas de juros altíssimas naquele período, por conta do crescimento econômico.
P. E de onde vem o dinheiro?
R. Precisamos fazer uma reforma tributária profunda. A estimativa dos economistas que trabalham conosco é de que se poderia se arrecadar 120 bilhões ao ano só tributando lucros e dividendos, com uma escala progressiva, o que corresponde a 2% do PIB. Imposto sobre grandes fortunas, que é uma tributação sobre imposto que está parado, poderia render até 0,5% do PIB. Aumentar a alíquota de imposto sobre herança também aumentaria a arrecadação. É possível se fazer hoje com que se reduza o pagamento de impostos pelos mais pobres e pela classe média, aumentando, por exemplo, a faixa de isenção do imposto de renda e fazendo com que comecem a pagar impostos para financiar o Estado brasileiro aqueles que estão no topo da pirâmide, o 1%, e você ter condições de sustentar políticas públicas a partir daí. Fazer com que rico comece a pagar imposto é uma questão de justiça tributária.
P. Como vê a política de desoneração de impostos adotada pelos governos petistas?
R. Nós não defendemos esta política de desonerações. Aliás, achamos que isso foi um dos grandes erros da política econômica adotada pela Dilma no seu primeiro mandato. Nós achamos que a economia deve se construir de outra maneira, com um papel pró-ativo do Estado, com um papel fundamental de investimento público e uma política econômica voltada para a distribuição de renda e o desenvolvimento de outras formas produtivas que estejam sintonizadas com os interesses sociais e não das grandes corporações econômicas.
P. Vocês são críticos da reforma da Previdência. Mas a previdência representará um problema para o país. Como vocês pretendem lidar com essa questão?
R. A previdência tem que ser vista como uma política de segurança social, de assegurar renda para o povo mais pobre. A reforma proposta pelo Temer é absolutamente criminosa, propõe que as pessoas se aposentem no caixão e não mexe nos privilégios essenciais. Nós queremos mexer, sim, na previdência. Mas nos privilégios de altas cúpulas do poder que ganham acima do teto constitucional. Nós queremos mexer nos privilégios dos militares que têm uma previdência especial altamente injustificável, muito mais onerosa proporcionalmente que a dos civis. Nenhum desses pontos entrou na reforma do Temer. Queremos, sim, cobrar a dívida das grandes empresas com a previdência.
P. Você como psicanalista, como avalia o discurso do Bolsonaro em relação à violência?
R. Nós vivemos em um período de muita insegurança da sociedade. Uma crise econômica, política, ética, uma falta de perspectiva de futuro. Esse sentimento geral de insegurança, incerteza, gera medo nas pessoas sobre o amanhã. A psicanálise nos mostra que frequentemente o medo se converte em agressividade, em intolerância. Quando somos guiados pelo medo, somos presas fáceis de um discurso agressivo. Nós mesmos reproduzimos esse discurso como uma formação reativa de nosso medo, uma forma de escondê-lo, de abafá-lo. É aí que o Bolsonaro entra. Ele entra como alguém que mexe nos piores sentimentos das pessoas, que canaliza pela via do medo, do ódio, a fragilidade que as pessoas estão em um momento como esse. Ele é uma síntese do que a sociedade brasileira tem de pior, dos sentimentos mais negativos das pessoas em um momento de crise. Mas esse não é o único caminho e é isso que queremos mostrar na nossa candidatura. A insegurança própria desses momentos não flui apenas pelo caminho do medo. Ela flui também pelo caminho da esperança. Ela pode desaguar na construção de um novo projeto de futuro, que esteja baseado não em ódio, mas em valores, em solidariedade, em estar junto com as pessoas. O papel de uma alternativa política no Brasil hoje tem que ser a política da esperança, de construir senso de comunidade. É isso que vai nos dar uma alternativa de futuro.
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