A consolação da Narrativa
A Narrativa grita no ouvido de Lula o contrário do que a Filosofia sussurrou a Boécio: “Agora é tempo de lamentação, não de emenda”
“Agora é tempo de emenda, não de lamentação”, diz a Filosofia a Boécio no início de A Consolação da Filosofia. O senador romano estava preso e era torturado enquanto aguardava a própria execução quando buscou consolo na ordem divina. A julgar pelo que diz o ex-presidente Lula, ele se sente tão injustiçado quanto se sentia Boécio — não confundir com Aécio —, mas o petista parece buscar consolo em outra musa. Quem lhe visita no cárcere da Polícia Federal em Curitiba é a Narrativa, que, ao contrário da Filosofia, não diz o que ele precisa ouvir, mas o que ele gostaria de ouvir.
Da forma mais simples e direta possível: o mínimo que se pode dizer sobre a prisão do ex-presidente é que ele foi abatido porque perdeu força. Lula está longe de ser quem já foi. Depois de deixar a presidência com seus quase 90% de aprovação, apontou uma sucessora que se mostrou incompetente até para se manter no poder — e parecia tão fácil. Imaginando-se forte o bastante, Lula seguiu na batalha de peito aberto, sem sequer uma armadura de foro privilegiado, que protege tanta gente mais fraca do que ele no momento, e acabou levando um corte quase fatal.
Talvez o ex-presidente tenha noção de seus imites agora, que está encarcerado. Mas a Narrativa grita em seu ouvido o contrário do que a Filosofia sussurrou a Boécio: “Agora é tempo de lamentação, não de emenda”. Nesse mundo alternativo das narrativas cantadas em prosa e verso, Lula caiu porque é de esquerda ou porque ama os pobres ou porque a elite que tanto o abraçou não gosta mais dele ou porque um dia ele foi pobre ou porque não tem diploma universitário ou porque a classe média brasileira não gosta de ver pobre andando de avião ou porque o juiz Sérgio Moro tem uma “mente doentia”.
É um raciocínio parecido com o “perder ganhando” da ex-senadora Marina Silva em 2014, mas completamente diferente. Não é perder por se recusar a abrir mão das próprias convicções. É construir um cenário no qual a derrota se metamorfoseia em vitória independente do que esteja acontecendo. A Narrativa diz que Lula só foi punido porque ousou fazer a coisa certa, e não porque fez algo errado ou condenável. E a ciência política brasileira entra na onda.
O objetivo é encontrar equilíbrio onde não é possível haver. Se puniram o PT, argumenta-se, é preciso punir na mesma intensidade os inimigos do PT. Do contrário, prova-se que a Lava Jato é partidária e que Lula sofre uma perseguição. Pode ser. Mas existe alguém no Brasil do mesmo tamanho de Lula? Fernando Henrique Cardoso é o que mais se aproxima, mas, depois de desarmado, esse foi esperto o bastante para não ir para a batalha e só foi reaparecer para o jogo uma década depois. Será por isso que os presidentes norte-americanos optam pelo ostracismo após o mandato?
Para alcançar a tal justiça partidária — considerando que ela deva por alguma razão existir —, a Lava Jato teria de inviabilizar as candidaturas alternativas à de Lula. Arrasar o sistema, derrubar a Bastilha, concluir a revolução, ainda que na sequência apareça um Napoleão. Não parece faltar vontade aos juízes e procuradores — e o Supremo Tribunal Federal tem ao menos um ministro declaradamente iluminista —, mas pode faltar força contra quem estiver mais bem protegido. Parece injusto com os heróis exigir tanto sangue derramado do outro lado, mas a própria operação contribui para a construção dessas narrativas. Ela mesma é impulsionada por uma narrativa — o que não é hoje em dia? —, a narrativa do combate à corrupção acima de tudo, inclusive da lei, se ela se colocar no caminho.
Getúlio Vargas se eternizou na consciência política nacional — e na legislação trabalhista — com um suicido. Ainda bem que Lula não foi tão drástico, há o Corinthians campeão, há netos, há tanta coisa mais. Mas está plantada desde a roteirização de sua prisão uma nova semente, que já começou a ser regada e que dará frutos por muitos anos. Não agora, que os fatos estão frescos demais, mas num futuro no qual o que restar desta época for apenas a imortal narrativa, que terá sido adubada por historiadores, professores, cientistas políticos, militantes e estudantes por meio de protestos e livros cujo grande trunfo será a falta de necessidade de serem lidos, pois eles já trarão no título a palavra de ordem. Até lá, a Narrativa se encarregará de consolar, distrair, divertir, inspirar e mobilizar, à espera do momento certo de deixar a prisão.
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