Cildo para forjar outros mundos
Obra do artista carioca é revista e comentada em livro-compêndio da editora Ubu
O lugar que Cildo Meireles ocupa no cenário artístico permite que o título de um livro sobre ele dispense sobrenome. Cildo: estudos, espaços, tempo, lançado recentemente pela editora Ubu, reúne uma série de projetos desde o início de sua carreira, nos anos 1960, assim como um apêndice de ensaios com traduções para o inglês e o espanhol. Nesse período, o trabalho de Cildo, de caráter altamente experimental, ganha reconhecimento internacional e é exibido nas principais mostras de arte. O livro vem em um momento de valorização da arte brasileira - só nos Estados Unidos, nos últimos anos, grandes exposições foram dedicadas a Hélio Oitica, Lygia Pape e Lygia Clark, da geração anterior à de Cildo - , que tem sido também objeto de livros acadêmicos. Mas, como adverte a psicanalista Suely Rolnik, o fetiche do mercado internacional de arte ameaça abafar o potencial subversivo das práticas artísticas dos anos 1960 e 1970. Um dos muitos méritos deste livro é justamente ressaltar o elemento combustivo da obra de Cildo.
De saída, um dos principais desafios é apresentar visualmente obra tão sinestésica, como ressaltam muitos dos escritos no volume. A opção pelos “estudos”, noção extraída da própria obra de Cildo, dá coerência ao portfólio. Como em Estudo para espaço/tempo (1969), a anotação de uma ideia, neste caso um conjunto de instruções, já é a própria obra. Quando justapostos à documentação visual das obras, os estudos têm caráter de esboços; outras vezes, são oportunidades para acompanhar o artista em seu processo de criação. É o caso de Eureka/Blindhotland. Em fichas escritas em 1975, Cildo reflete sobre as ações iniciadas em 1970 e os possíveis desdobramentos dessa obra multifacetada. Em outras publicações, os esboços geralmente são mostrados a título de curiosidade, sem muito destaque. Aqui ganham a linha de frente, e isso fornece elementos para uma leitura renovada.
Os organizadores Diego Matos e Guilherme Wisnik tiveram amplo acesso ao arquivo pessoal do artista, o que se traduz na apresentação de imagens incomuns, incluindo os estudos, que também jogam luz sobre o que os arquivos contêm em potencial. O próprio Cildo diz que muitas obras surgem de notas tomadas muitos anos antes, recombinadas com outras ideias escritas em fichas ao longo dos anos. A direção de arte é notável, da escolha do papel e a qualidade da impressão à edição. As imagens têm espaço para respirar e não estão ali para meramente ilustrar. Ao contrário, guiam a incursão pela obra de Cildo, até ganharem novos significados com a leitura de cada texto.
A segunda parte do livro reúne doze textos escritos por críticos de filiações teóricas diversas entre 1969 e 2017. A fortuna crítica sobre Cildo é vasta, ainda que dispersa em catálogos de exposições ou em livros não-monográficos. Os organizadores optaram por publicar alguns ensaios ainda inéditos, outros publicados em edições que hoje estão fora de catálogo e textos até então sem tradução para o português. De modo geral, a seleção reflete a abrangência da obra de Cildo, que vai de questões específicas sobre a geopolítica do Brasil, a história colonial e temas da economia a meditações sobre a natureza humana, as regras da física e o raciocínio matemático. Muitos dos textos focam em trabalhos específicos. É o caso de Moacir do Anjos, que a partir de Babel (2001-2006) e Marulho (1997) propõe uma reflexão sobre a cultura brasileira sobretudo a partir do som (estudos sonoros são hoje um campo dos mais interessantes na crítica cultural).
Por sua vez, a instalação Desvio para o vermelho (1967-1984), uma das mais conhecidas do artista e hoje exibida permanentemente no Instituto Inhotim, recebe alentadas análises tanto de Lisette Lagnado quanto de Suley Rolnik. Comumente associada, sem muita mediação, à violência da ditadura militar - leitura que Cildo não incentiva por seu simplismo -, as autoras devolvem à obra seu potencial estético. Lagnado a situa no contexto da 24a Bienal de Arte de São Paulo, em 1998, e reflete sobre o que cada remontagem em determinado contexto histórico pode aportar ao projeto original. Já Rolnik resgata seu caráter político, mas propõe outros modos de conceber a política em suas manifestações macro e micro e suas relações com a estética. Há no livro espaço para a diferença, e até o dissenso. Por exemplo, enquanto muitas interpretações apontam para o comentário social contido nas obras de Cildo, Sônia Salzstein questiona em seu ensaio a validade de leituras sociologizantes e foca no caráter elemental da obra, aquém de qualquer gesto interpretativo. A multiplicidade de ideias contidas nos diferentes ensaios do livro é bem-vinda numa época em que o debate público sobre as artes no Brasil é pautado pelo despropósito.
A densidade desses textos relativamente curtos seria difícil de se alcançar em panoramas que passam muito rapidamente de um trabalho a outro, como costuma acontecer em catálogos. Isso dito, os textos deste volume que abordam a obra de Cildo em seu conjunto são extraordinários, sobretudo o de Frederico Morais e o de Ronaldo Brito. Escrito em 2000, período-chave na legitimação internacional da carreira do artista, o texto de Morais, inédito até então, revela tanto sobre a obra de Cildo quanto da trajetória do crítico, cuja atuação foi fundamental para o desdobramento das pesquisas estéticas de vários artistas contemporâneos. Como ele mesmo define, queria “dar à própria crítica de arte o estatuto de criação”. A relação entre crítico e artista vem de décadas, e não passou incólume para nenhum dos dois. Cildo responde mais explicitamente ao novo tipo de trabalho crítico com a obra Introdução à nova crítica, de 1970. Já o clássico ensaio de Ronaldo Brito, publicado originalmente em 1981, marca uma série de leituras que vêm depois. É preciso lembrar, a propósito, que suas formulações sobre o circuito das artes, que informam também sua seminal análise do Neoconcretismo, foram feitas em diálogo com o trabalho de Cildo, mais especificamente a série Inserções em circuitos ideológicos, iniciada em 1970. Para Brito, seria preciso politizar o circuito, tornar visível sua lógica. O crítico via no trabalho de Cildo uma vontade de implodir a autoria, o gênio, o fetiche do objeto.
Fica claro também que o outro eixo que perpassa os textos é o conceito de espaço (ou espaços, como traz o título) e tempo. E por que não tempos? Do contraste entre o tempo indígena e o da cultura ocidental, são muitas as temporalidades em questão. E se Cildo declarou que seu principal campo de reflexão era o espaço “no sentido físico, geométrico, histórico, psicológico, topológico e antropológico”, o texto de Maaretta Jaukkuri mostra como todas estas definições compartilham uma indicação temporal. Ela conclui que a obra de Cildo “evoca um tempo próprio a cada um de nós”.
O texto de Diego Matos no fim do volume dá um novo sentido às leituras retrospectivamente. Ao ler a obra de Cildo em paralelo aos debates científicos na área da física, mostra não apenas como descobertas da teoria do caos podem ser ilustradas por certas obras, mas como, muitas vezes, a intuição artística se dá de forma paralela ou mesmo antecipa o que a ciência vem comprovar depois. No fim, Matos elabora a partir do conhecimento científico o que Morais havia sugerido: a arte de Cildo é “fruto da observação da vida e do mundo”, mas “não para descrevê-lo”, senão para “compreendê-lo em profundidade”. Ou, por outra, na metafísica do samba de Paulinho da Viola que Morais lembra muito a calhar: “as coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender”. Seria, no entanto, reducionista atribuir à possibilidade de comprovação do que existe no mundo o valor da arte. Afinal, é preciso atentar para o que a arte pode fazer no sentido de imaginar outros mundos a partir de experiências com a matéria e com os sentidos. À maneira do escritor argentino Jorge Luis Borges, como aponta Lynn Zelevansky, o trabalho de Cildo é capaz de forjar outros mundos, o que não é pouca coisa.
Marina Bedran é doutoranda no Departamento de Espanhol e Português da Universidade de Princeton. Organizou e traduziu A aventura do estilo - Ensaios e correspondência de Henry James e Robert Louis Stevenson (Rocco, 2017).
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.