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As fortunas que estão catapultando a arte latina

EL PAÍS entrevista grandes colecionadores de origem latino-americana, que lutam para fazer justiça a criadores esquecidos

O empresário argentino Alan Faena diante de um afresco do artista Juan Gatti, em seu hotel de Miami Beach
O empresário argentino Alan Faena diante de um afresco do artista Juan Gatti, em seu hotel de Miami BeachÁngel Valentín (Polaris / Contacto)

A recente doação da todo-poderosa colecionadora venezuelana Patricia Phelps de Cisneros a seis museus internacionais é um marco que constata o papel que patronos e filantropos desempenham em um campo de orçamentos tão exíguos como o da cultura. EL PAÍS visita a feira Art Basel Miami Beach, uma boa ocasião para conhecer muitos desses colecionadores de origem latino-americana. Eles afirmam se motivarem por sua paixão artística. E pela vontade de fazer justiça a criadores esquecidos até pouco tempo atrás pelas grandes instituições culturais.

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A cita é um antigo ginásio, perto do moderníssimo Design District de Miami, sob o obrigatório sol da justiça que brilha na capital latina dos Estados Unidos. Sobre a fachada deste edifício de ar industrial se projeta um filme de título desconhecido. A fita é protagonizada por membros endinheirados da sociedade cubana na véspera da revolução. Alguns dos descendentes desses rostos anônimos, reunidos depois de sucessivos exílios de costa a costa da geografia americana, se encontram na recepção que ocorre no interior. Estamos na sede da fundação que a grande colecionadora Ella Fontanals-Cisneros tem em Miami. É a chamada CIFO, nome que inverte seu sobrenome composto, no qual se mesclam origens catalãs e canárias. Sem contar os de seu ex-marido, o proprietário da Pepsi venezuelana, que conheceu durante seu exílio em Caracas. Ali cresceu depois de abandonar sua Cuba natal.

Todo mês de dezembro, quando começa a feira Art Basel Miami Beach, esta mulher de idade indefinida, vestida com terninho e tênis, abre as portas do lugar e pendura em suas paredes um punhado de obras de sua coleção, formada por um total de 3.200 peças. Nesta ocasião, a honra é de três grandes figuras da abstração cubana: Loló Soldevilla, Sandu Darié e Carmen Herrera. Contornando telas geométricas, a colecionadora se distancia do burburinho e começa a lembrar como conheceu Herrera quando ainda não tinha vendido nem um só quadro. “Pensei que fosse uma moça jovem”, sorri. “Na realidade, tinha 87 anos.”

Patricia Phelps de Cisneros ao lado da obra 'Cubo de Náilon', de Jesús Soto. A colecionadora venezuelana doou recentemente 202 obras a seis museus internacionais, entre os quais o madrilenho Reina Sofía
Patricia Phelps de Cisneros ao lado da obra 'Cubo de Náilon', de Jesús Soto. A colecionadora venezuelana doou recentemente 202 obras a seis museus internacionais, entre os quais o madrilenho Reina SofíaMatthew Lloyd (Getty)

Uma década e meia depois, Herrera se tornou uma das artistas vivas mais bem cotadas, presente nas coleções do MOMA e da Tate Modern. Com 102 anos, bateu o próprio recorde em novembro ao vender uma obra pintada em 1956, Untitled (Orange and Black), por 1.800.000 dólares (cerca de 5.800.000 reais) em um leilão em Nova York. Sim o apoio dado por colecionadores como Fonatanals-Cisneros, pode ser que tivesse permanecido no esquecimento. A descoberta de artistas como Herrera cresceu em paralelo à da própria arte latina, que não para de superar recordes há uma década. “Muitos a viam como uma arte inferior, naif ou atrasada”, afirma a colecionadora, que se interessou pelos artistas venezuelanos desde sua mais tenra juventude. “Nunca tive essa visão. Sempre me pareceu que estava no nível de qualquer outra tradição. Graças a um maior conhecimento, às mostras organizadas pelos museus e também ao esforço de pessoas como eu, saímos dessa situação indesejável.”

No mundo da arte, a capital da América Latina é Miami

O casal Mónica e Javier Mora em sua residência de Key Biscayne (Miami, Flórida), entre obras de Nate Lowman, Sterling Ruby e Olafur Eliasson
O casal Mónica e Javier Mora em sua residência de Key Biscayne (Miami, Flórida), entre obras de Nate Lowman, Sterling Ruby e Olafur EliassonÁngel Valentín (Polaris / Contacto)

A sucursal na Flórida da feira suíça Art Basel, fundada na Basileia nos anos setenta, vem sendo realizada desde 2002 junto à praia de Miami, a meca turística de clima aconchegante e deliciosa arquitetura art déco. Em 15 edições, o número de galerias se multiplicou por dois, e seus participantes, por três. A Art Basel Miami se transformou em ponto de encontro para os colecionadores do panorama latino-americano, grupo que continua em expansão. “O norte e o sul da América se encontram em Miami. Aqui é onde está a elite socioeconômica do continente e, como tal, era um lugar propício para a arte. Os mexicanos não vão ao Brasil nem os brasileiros ao México. Mas todos vêm a Miami. A feira ajudou a catalisar a cena do colecionismo. Alguns vinham de férias com amigos a Miami. E, de passagem, passeavam pela feira. Assim, esses amigos cultivaram o gosto pela arte e começaram a criar as próprias coleções. E, 16 anos depois daquela primeira edição, não só há uma cena de colecionismo no México e no Brasil, onde já existia há décadas, mas também em lugares como Chile, Peru, Colômbia e Porto Rico”, relata Marc Spiegler, diretor global da Art Basel.

O chileno Juan Yarur, membro dos comitês de aquisições do MOMA e da Tate Modern, em sua casa de Miami Beach, diante de uma luminária do artista chileno Sebastián Errázuriz e um quadro do cubano Alejandro Campins
O chileno Juan Yarur, membro dos comitês de aquisições do MOMA e da Tate Modern, em sua casa de Miami Beach, diante de uma luminária do artista chileno Sebastián Errázuriz e um quadro do cubano Alejandro CampinsÁngel Valentín (Polaris / Contacto)A

A arte é um negócio deficitário. O que move as grandes fortunas latinas a investir nele?

Filho de cubanos que nasceu em Buenos Aires, cresceu na Colômbia e se instalou em Miami em 1968, Jorge Pérez é hoje um dos homens mais ricos dos Estados Unidos graças a seu império imobiliário. De seu escritório em Villa Cristina, mansão à beira-mar no bairro de Coconut Grove, que costuma abrir uma vez por ano durante a semana de arte em Miami, em um concorrido brunch, afirma taxativo: “Havia décadas a arte latino-americana vinha sendo maltratada. Não faz muito tempo as obras dos maiores mestres eram vendidas por um punhado de centavos. Quando falava de certos artistas aos conservadores dos maiores museus, eles me respondiam: ‘Quem?’”.

O gosto pela arte lhe foi incutido por uma mãe “muito existencialista”, admiradora “de Sartre e Kierkegaard”, que o obrigava a ir aos museus em um momento em que ele “só queria jogar futebol”. Hoje ele a agradece por ter lhe tirado a bola. “A arte é um mundo distinto, no qual não penso em lucros, números e resultados imediatos. Não tem a ver com o econômico, mas com o espiritual e o sensorial. O artista me leva a um lugar ao qual não costumo ir em minha vida cotidiana”, explica. Variante latina do self-made man, este empresário criou em 2013 o museu que leva seu nome em um edifício de Herzog e De Meuron situado no downtown de Miami, ao qual doou 1.300 obras de sua coleção e os recursos necessários para adquirir 500 outras. A arte internacional convive em seu interior com uma clara inclinação pela latina: desde o cubano Wilfredo Lam até a colombiana Beatriz González. Pérez admite que seu colecionismo também tem sido guiado por certa vontade política. “Para mim, era importante que contássemos com um museu que levasse um nome hispânico, como símbolo de nossa contribuição a esta cidade e a este país.” Conhecido doador democrata, rompeu os laços de amizade com Donald Trump quando se tornou presidente dos Estados Unidos. “Nossas relações esfriaram muito. Já não nos falamos”, confessará antes de se despedir.

O empresário Jorge Pérez está à frente de um império imobiliário. Na imagem inferior, em Villa Cristina, sua mansão de Coconut Grove (Miami, Flórida), posa diante de 'The Hunter' (2016), do cubano Enrique Martínez Celaya
O empresário Jorge Pérez está à frente de um império imobiliário. Na imagem inferior, em Villa Cristina, sua mansão de Coconut Grove (Miami, Flórida), posa diante de 'The Hunter' (2016), do cubano Enrique Martínez CelayaÁngel Valentín (Polaris / Contacto)

Do outro lado da baía, Juan Yarur aguarda em um luxuoso apartamento situado em um dos pisos superiores de um edifício com vista invejável. Aos 34 anos, este colecionador chileno representa uma mudança geracional. Filho de magnata têxtil, comprou sua primeira obra aos 12 anos. Aos 17 começou a colecionar. Aos 20 já entendeu que iria se dedicar a isso. Hoje possui mais de 400 obras, onde figuram nomes internacionais como Damien Hirst, Tracey Emin e Takashi Murakami. E também tem uma grande mostra da arte de seu país, de 1960 até o momento. Faz parte dos comitês de aquisição de arte latino-americana do MOMA e do Metropolitan, de Nova York, e da Tate Modern, de Londres, à qual se uniu aos 26 anos.

Segundo Manuel Borja-Villel, diretor do Museu Reina Sofía, em Madri, hoje mais do que nunca é fundamental contar com o apoio dos patronos: “Vivemos em uma época em que as instituições públicas, e também as privadas com vocação de serviço público, já não têm os orçamentos de aquisição necessários para encarar certas compras. Ninguém tem 300 milhões de euros para comprar um quadro”.

Para Yarur, os centros de arte entenderam que deveriam aumentar a presença de certas tradições pouco representadas em suas coleções ou seriam condenadas à irrelevância. Por exemplo, todas aquelas localizadas ao sul do trópico de Câncer. “Se não, teriam se convertido em mausoléus”, afirma. Assim como os demais entrevistados para esta reportagem, Yarur considera que uma coleção é sempre um retrato de seu proprietário. “Quando vejo a minha, me dá um pouco de medo”, brinca. “É como ir ao psicólogo durante a parte mais difícil da terapia”. Ele ainda preside a Fundação AMA, destinada a promover o crescimento do panorama das artes no Chile e concede bolsas a artistas locais para que façam uma residência de um ano em Londres. “Não tem sentido que a arte seja de uma pessoa só. Quero que as outras pessoas também desfrutem dela”.

O brasileiro Luís Paulo Montenegro, na feira Art Basel Miami Beach, em dezembro. A partir de 20 de fevereiro, expõe sua coleção pela primeira vez na mostra ‘Visões da Terra / O Mundo Planejado’, na Sala da Arte da Fundação Banco Santander em Boadilla del Monte (Madrid).
O brasileiro Luís Paulo Montenegro, na feira Art Basel Miami Beach, em dezembro. A partir de 20 de fevereiro, expõe sua coleção pela primeira vez na mostra ‘Visões da Terra / O Mundo Planejado’, na Sala da Arte da Fundação Banco Santander em Boadilla del Monte (Madrid).Ángel Valentín (Polaris / Contacto) /

Luís Paulo Montenegro, patrono brasileiro: “É natural apoiar os artistas do seu país”. Mas existem estes outros critérios

No coração de Miami Beach, fervem os corredores da feira Art Basel. Rastreando seus stands encontramos o brasileiro Luís Paulo Montenegro, vice-presidente do Ibope e dono de uma interessante coleção de 300 obras que serão expostas pela primeira vez em Madri, a partir de 20 de fevereiro, a convite da Fundação Banco Santander e coincidindo com o início da Arco. Será que ele já saiu desta feira alguma vez sem comprar nada? “Acho que aconteceu uma vez”, responde, enquanto sua mulher, ao lado, desmente. O empresário começou a colecionar arte em 1999, quando comprou uma obra de Cândido Portinari. Desde então montou um dos mais destacados conjuntos de arte brasileira moderna e contemporânea. Nela estão representados Lygia Clark, Hélio Oiticica e Cildo Meireles, e também Alexander Calder, Willem de Kooning e Andy Warhol. “É natural apoiar os artistas do seu país. Os russos compram obras de Malevich para que elas voltem para a Rússia”, afirma Montenegro. “Mas não se pode categorizar demais. A casa de leilões Sotheby’s acabou com seu departamento de arte latino-americana e o integrou ao de arte contemporânea. Me parece uma boa decisão. A arte é um diálogo mundial”.

Ella Fontanals-Cisneros: “Muitos viam a arte latina como naif ou atrasada. Graças ao esforço de pessoas como eu saímos dessa situação indesejável”

Não muito longe, Mónica e Javier Mora se interessam por uma obra de rocha vulcânica do artista mexicano Pedro Reyes, representado pela prestigiada Lisson Gallery. Esta engenheira venezuelana e este consultor financeiro, filho de cubanos exilados em 1960, possuem uma coleção que tentam manter em torno de 150 obras, mas todas de primeiríssimo nível. Mais tarde, propõem uma visita guiada por sua casa em Key Biscayne, ilhota estonteante a sudeste de Miami na qual Juan Ponce de León atracou em 1513. Seus quadros feitos por fenômenos recentes do mercado de arte, como Danh Vo e Sterling Ruby, convivem com uma ampla representação de arte latina, com nomes como Jesús Rafael Soto, Gabriel Orozco e Ana Mendieta. Mora, que frequentemente trabalha de casa, confessa que costuma se instalar com seu laptop diante de algumas obras. Assim consegue neutralizar a rotina. “A arte é um contrapeso, algo que te inspira. Sua beleza te enriquece e te dá energia”.

Ella Fontanals-Cisneros, cubana exilada na Venezuela, diante de uma tela de Loló Soldevilla, cuja obra está exposta até 4 de março na Fundação CIFO de Miami
Ella Fontanals-Cisneros, cubana exilada na Venezuela, diante de uma tela de Loló Soldevilla, cuja obra está exposta até 4 de março na Fundação CIFO de MiamiScott McIntyre (Polaris / Contacto)

Por um mundo distinto transita Alan Faena. Vestido informalmente mas de um branco alvíssimo, o empresário argentino se senta em um terraço no pátio de seu hotel, decorado com obras de superestrelas como Jeff Koons e Damien Hirst, e murais de inspiração tropical pintados como afresco por seu compatriota Juan Gatti. A decoração foi assinada pelo cineasta Baz Luhr­mann e sua mulher. Em 2015, Faena renovou este exuberante edifício dos anos quarenta próximo ao mar, em Miami Beach, seu segundo projeto após o modelo original que fundou com sucesso nas docas de Puerto Madero, em Buenos Aires. “Minha missão consiste em despertar lugares adormecidos e esquecidos”, afirma. Um ano mais tarde, completou com o Faena Forum, um centro multidisciplinar de arte projetado por Rem Koolhaas e dirigido por sua ex-mulher, Ximena Caminos. “Eu não costumava vir aqui. Escolhi Miami quando descobri a possibilidade de estar sempre a 10 metros das férias que uma pessoa sempre sonha em ter”, diz Faena enquanto aponta para a cor turquesa do mar que se abre diante de seus olhos.

“Nas últimas décadas o colecionismo latino-americano evoluiu e adotou uma perspectiva global”, diz Patricia Phelps de Cisneros

O empresário quer colocar sua coleção de arte a serviço de “uma experiência total”, que condensa hotelaria de luxo, arquitetura sustentável e obras contemporâneas. “Não faço hotéis, mas sim algo parecido com os ashrams”, afirma, em referencia aos lugares de meditação na tradição hinduísta. “Minha obsessão é encontrar uma arte mais democrática, que seja gratuita e acessível a todo o mundo, que passe longe de se ter muito ou pouco conhecimento sobre o assunto. Sou contra aos esnobismos da arte, onde sempre são os mesmos 30 indivíduos que opinam. Tenho direito a que me deixem entrar em qualquer lugar. Não sei muito sobre nada, mas sinto muito sobre tudo”. Para escolher suas obras, Alan Faena diz contar com apenas um critério: “A emoção é a única coisa que conta. Diante de uma obra de arte o coração tem que bater acelerado, assim como acontece no amor à primeira vista”, conclui, antes de desaparecer pelos corredores de seu majestoso estabelecimento.

Os colecionadores mudam as cenas artísticas de seus países, mas agora criaram uma nova denominação: arte global latina

Em 2016, o site especializado Artnet elegeu Faena como o 26o colecionador mais importante do planeta, apenas sete posições abaixo de Patricia Phelps de Cisneros. A recente doação de 202 obras a seis museus internacionais – entre eles o Reina Sofía – por parte da colecionadora venezuelana, proprietária do que se considera, até hoje, o mais impressionante conjunto de arte latino-americana do planeta, lembra do compromisso dos patronos na economia da arte. E ainda mais, desde que os orçamentos de muitas instituições se tornaram especialmente exíguos. Perguntada sobre a importância da arte latina no panorama atual, Phelps de Cisneros argumenta que não é só uma questão financeira, mas sim de acesso à obra. “São muitos os motivos, mas todos se baseiam no conhecimento”, responde. “Os colecionadores, na medida em que apoiaram as instituições públicas, tiveram um papel fundamental neste processo. Em parte porque conhecem bem a cena artística de seus países. E também porque querem ver essa cultura melhor apresentada e preservada”.

“A arte conecta com o espiritual e o sensorial. O criador me leva a um lugar ao qual não costumo ir na minha vida cotidiana”, diz o magnata Jorge Pérez

Phelps de Cisneros considera que a identificação habitual entre o comprador e a obra, que costumava explicar o apego dos latino-americanos pela arte produzida em sua região, está começando a se transformar em outra ideia. “No princípio, era assim. Os argentinos colecionavam arte argentina, os colombianos optavam pela arte colombiana... Esse momento já passou. Nas últimas décadas, o colecionismo latino-americano evoluiu e adotou uma perspectiva global”, argumenta. “Esse processo é acompanhado pela crescente globalização das coleções internacionais, que hoje, obrigatoriamente, devem incluir artistas latino-americanos, assim como de outros lugares que antes eram considerados como algo à margem”. Os pioneiros são esses indivíduos discretos e esquivos, mas inevitáveis na economia da arte desde tempos imemoriais.

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