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Sarah Andersen: “São os próprios millennials que dão voz a extremistas de direita”

Criadora da webcomic de sucesso mundial 'Sarah's Scribbles' fala sobre procrastinação, Trump e a Alice de Carroll

Uma ilustração dos quadrinhos de Sarah's Scribbles.
Uma ilustração dos quadrinhos de Sarah's Scribbles.Sarah Andersen
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Nos quadrinhos, Sarah Scribbles é uma garota de cabelos despenteados, com tendência à timidez, que tanto fala sobre a chatice de se depilar como sobre o prazer de procrastinar. No mundo real, o de carne e osso, Sarah Andersen é uma elegante jovem na faixa dos 20 anos, sorridente, que parece gostar mais de escutar que de responder.

Andersen é um expoente da geração de quadrinistas que exploram na Internet o fenômeno conhecido como webcomic. Sua Sarah Scribbles, que acumula mais de 400.000 seguidores no Twitter, é um sucesso editorial traduzido para várias línguas. Ela tocou a sensibilidade mais mundana dos millennials, a do humor nas pequenas coisas, e a transformou em tiras de cinco quadrinhos para consumir em uma leitura fugaz, mas com um efeito mais duradouro que a simples gargalhada.

Pergunta. Os caricaturistas têm hoje uma popularidade inédita pelo fenômeno online. Dando uma olhada no seu Twitter, vejo que você viaja para meio mundo ao encontro dos fãs. Como se lida com isto?

Resposta. A Internet permitiu a conexão com os quadrinistas. Deu início a uma nova era. Eu sinto isso como algo surreal. Acho que era a última coisa que esperava quando comecei.

P. E como começou tudo?

R. De uma maneira muito amadora, enquanto estudava artes. Não tinha nem ideia do que fazia. Você pode ser alguém realmente bom em ilustração clássica, chegando até mesmo ao fotorrealismo, e no entanto não ser capaz de fazer caricaturas porque isso exige um esforço de pura imaginação. No meu caso, foi tentativa e erro. Estraguei tudo muitas vezes (risos).

P. Como definiria este processo? Pessoal ou colaborativo? Você mudava muito o que fazia em função do que as pessoas pareciam gostar mais?

R. Acho que não... mas é verdade que desce o início eu recebia opiniões. No começo, de meu círculo de amigos. Acho que isso poderia ser mais bem definido como um processo catártico no qual eu podia ver que as coisas que inventava faziam as outras pessoas rirem. E dessa maneira eu ia solucionando os problemas criativos que apareciam no caminho para me transformar em criadora de histórias em quadrinhos.

P. Pode citar alguns desses problemas?

R. Claro. Um dos principais era o método. Sou muito antiquada nas coisas de que gosto. Assim, queria fazer do modo tradicional, no papel. Mas simplesmente não funcionava muito lá. Não ficava bem no papel e o escaneamento para digitalizar os desenhos também não tinha muita qualidade. Era um processo pouco eficiente. Por isso, passei para o digital. E levei um tempo para encontrar os pincéis digitais adequados para Sarah, para que, mesmo sendo digital, tivesse essa sensação de feito à mão.

Os quadros foram outro ponto importante. Acredito que levei mais ou menos um ano chegar a esta solução de um, dois, três, quatro, cinco.

P. Esta disposição em cinco quadros é particularmente cômoda para ler no celular. Pensou nisso quando decidiu usá-la?

R. Sim, com certeza. Eu pensava desde o começo que meus leitores liam uma história em quadrinhos no formato scroll [deslizando a tela de cima para baixo]. Começou sendo um Tumblr, então meus quadros funcionavam muito bem.

P. Como millennial, sinto-me bem retratado em Sarah Scribbles. Você acha que a conexão com esta geração ajudou a transformá-la em uma personagem tão icônica e global?

R. [Risadas] Não sei. Acho que as mulheres sim se identificam com a personagem, não sei se a geração toda faz isso. Mas acredito, sim, que haja certos sentimentos muito específicos para os millennials. Eu os toco porque sou millennial e falo do que sinto e vejo. Enfim, não sei. Talvez [risos].

P. Por que os millennials custam tanto para crescer?

R. Acho que tem muito a ver com a desilusão. Não é algo exclusivo dos millennials, mas é especialmente forte em nossa geração. Contaram-nos que havia uma narrativa, da universidade ao trabalho à família, e depois nada disso funcionou para a gente. Por exemplo, muitos casais jovens acabam se divorciando, talvez por não estarmos [como geração] preparados para nos casar. Nos Estados Unidos, o custo para cursar uma universidade é tanto que muitos não sabem se poderão pagar. E acho que toda essa pressão é que nos torna mais suscetíveis a ficar descansando no sofá [risos].

P. Paul Levitz, ex-presidente da DC Comics, me confiou uma ideia interessante durante sua visita a Madri. Talvez Donald Trump seja a melhor coisa que podia acontecer com os Estados Unidos, pois é um desastre tão óbvio que a geração seguinte, ou seja, os millennials, nunca votarão em alguém assim. Concorda?

R. Bem... se isso for certo, será bom. Mas... os horrores da Segunda Guerra Mundial foram absolutamente terríveis. Juramos não voltar a cair num horror assim. Os nazistas foram condenados de uma maneira tão severa que esperávamos o fim dessa ideologia. Hoje, porém, temos um movimento neonazista em pleno auge nos EUA. De modo que esse pensamento, essa coisa do “isso foi tão ruim que jamais repetiremos”, já ocorreu muitas vezes na História. O que aconteceu antes não é o mesmo que acontece agora. Mas há paralelismos. Não confio no sentimento de que há um ponto de desastre tão grande que impeça a condição humana de repeti-lo no futuro. Por isso, não, não estou de acordo. Mas concordo que [Trump] energizou a resistência. Podemos ver isso na atitude que as mulheres vêm tomando. Deu asas à resistência. Mas não acho que isso signifique que vamos ganhar. Tenho muita esperança num futuro com uma visão mais democrática, livre e de esquerda. Mas não posso garantir. Por isso, acho que nós, jovens, precisamos estar informados e atentos.

P. Meu sentimento como millennial de esquerda... alguém, por exemplo, como você, está completamente em sintonia com minhas ideias, com minha visão de mundo. Mas há muita gente da minha idade que não compartilha de jeito nenhum essa visão de mundo. A pergunta é: nós, millennials de esquerda, conhecemos o inimigo o suficiente? Nos esforçamos para compreender seu ponto de vista e o que o leva a eleger alguém como Trump como líder?

R. Concordo plenamente com isso. É essencial que os millennials se informem. Um problema que vejo se repetir, inclusive nos meios de comunicação norte-americanos, é que dão voz a extremistas de direita para que, digamos, suas próprias palavras os prejudiquem. Mas o que não entendem é que acabam prejudicando o público tradicional desses veículos, os democratas de esquerda. Um democrata de esquerda não compreende os argumentos de supremacistas brancos porque não foi exposto a essa elaboração de ideias e essa propaganda durante toda a sua vida. Não entende seu ponto de vista e sua forma de ver o mundo. E, como não os entende – vi isso acontecer muitas vezes –, esses extremistas de direita conseguem desarmar seus interlocutores de esquerda, fazendo-os parecer idiotas. E de repente você conseguiu o efeito contrário: deu a eles uma plataforma para difundir e reforçar sua mensagem. Estou muito, muito convencida de que a esquerda não entende seu inimigo. Isso não significa que nossos valores sejam errados. O que significa é que temos que deixar de olhar só para nós mesmos.

P. Parte da solução é sentar para conversar com pessoas das quais não gostamos e escutar?

R. Sim, temos que escutar os argumentos e opiniões dos conservadores e das pessoas de direita. Mas, ao mesmo tempo, temos que impedir a difusão das mensagens da extrema-direita. Há uma diferença entre iniciar um diálogo buscando entendimento mútuo e servir de palco para ideias tóxicas.

P. Vão apagar Kevin Spacey de um filme. Também vão retirar sua filmografia de diversas plataformas de streaming. Acha que o politicamente correto, que vem sendo incentivado sobretudo pela esquerda em movimentos como #Metoo, corre o risco de exercer uma censura sobre a arte?

R. Para mim, o exemplo de Kevin Spacey não é censura. Estamos falando de um caso de abuso, algo inaceitável. Você está falando de silenciar? As mulheres foram silenciadas ao longo de gerações. E foi justamente o fim desse silêncio que permitiu que esses abusos viessem à tona e que a sociedade reagisse. Pessoalmente, não gostaria de trabalhar com alguém que assediou outras pessoas. E, com respeito à liberdade de expressão, volto à questão da escolha para trabalhar com alguém. Se você decide prescindir de uma pessoa cujo comportamento desaprova, não está desrespeitando a liberdade de expressão. Se alguém foi horrível e sua decisão – como corporação ou como pessoa – é não trabalhar com ele, não o está silenciando. Sei que essa questão às vezes está indo para o lado de que “não dar trabalho para Kevin Spacey é silenciar seu talento”. Não acho. Para mim, você está tomando uma decisão moral para manifestar sua total repulsa por certos modos de agir entre pessoas.

P. Voltemos a Sarah Scribbles. Os quadrinhos de humor costumam deixar seus personagens isolados no tempo. Garfield é sempre Garfield. Calvin e Haroldo, também. Mas Sarah Scribbles é seu alter ego. Portanto, se você mudar bastante como pessoa, será possível continuar fazendo o livro? Terá que mudar Sarah tanto quanto você mesmo mudou? E, se optar por esse caminho, acha que o público aceitará? Ou chegará o momento em que essa conexão entre você e Sarah vai se romper e ela passará a ser, simplesmente, uma personagem?

R. [Risos]. Não, não acho que isso vá acontecer. O que acho que ocorrerá, pois já vi uma evolução nos meus quadrinhos que aponta nessa direção, é que o assunto tratado pelas tirinhas provavelmente mudará à medida que eu mudar. Mas tampouco acredito que sentirei a necessidade de reinventá-la completamente, ou de fazer com que ela aparente ter mais idade. Acho que será mais uma questão de tom. Não posso prever o futuro, mas isso é o que meu instinto me diz.

P. Sente que sua etapa de quadrinhos de humor será uma relação de longo prazo? Ou terá um final?

R. O certo é que fui à faculdade para me tornar ilustradora. É o que sempre quis ser. E, quando retomar esse caminho, é provável que tenha de deixar de fazer as tirinhas para focar. Então tenho uma visão disso, um final, e minha volta à escola de Belas Artes. Evidentemente, isso me traz um tipo de segurança econômica que não vejo possível no curto prazo, nos próximos anos. Mas a ilustração foi meu primeiro amor e acho que voltarei a ele. Mas que ninguém se assuste, pois isso não acontecerá tão cedo! [Risos]

P. De fato, em seu site podemos ver já um de seus próximos trabalhos como ilustradora, Chessire Crossing, com roteiro de Andy Weir. Pode me contar alguma coisa sobre ele para fechar essa conversa? Porque, no primeiro capítulo, vemos que compartilham vinhetas com Wendy, de Peter Pan, e com Alice, de Lewis Carroll.

R. Para um artista, é um enorme desafio ilustrar Alice no País das Maravilhas. Vamos publicar também em papel. De fato, quando voltar para casa eu tenho que começar a ilustrar o segundo volume. Depois virão o terceiro e o quarto... Acho que o resultado está sendo muito interessante porque somos um coquetel estranho de criadores. Eu, por exemplo, estou tentando enfrentar um estilo de desenho muito detalhado, inspirado nos grandes ilustradores da idade de ouro. Meu colorista leva a paleta pelo caminho oposto ao que eu levaria. E isso é muito bom. Acho que sua forma de dar a cor plana é o que transformou meus desenhos numa tirinha.

P. Ok, a última. Se aceitasse escrever ou ilustrar um quadrinho de super-heróis, o que gostaria de contar?

R. Hummmm. [Sorri]. Acho que uma coisa que me atrai muito é o poder da transformação. Sobretudo porque um personagem com um poder de transformação total, que pudesse virar tanto um animal como um objeto, poderia ver o mundo de uma maneira muito mais completa e simples, sem ser observado. Então acho que iria por esse caminho, um personagem extremamente tímido, que não sabe como existir no mundo e que, por isso, muda constantemente, como um camaleão.

Informação útil

Título: Ninguém vira adulto de verdade

Autor: Sarah Andersen

Ano de publicação no Brasil: 2016

Editoria: Companhia das Letras

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