Centenas de criminosos argentinos são presos por cair na tentação de ver um jogo de futebol
Como no filme 'O Segredo de Seus Olhos', os foragidos foram presos este ano na Argentina ao irem ao estádio de seus times
Quando Juan José Campanella e Eduardo Sacheri escreveram o roteiro de O Segredo de Seus Olhos houve debate entre eles. Poderia parecer exagero que um perigoso assassino procurado pela polícia fosse ao estádio ver sua equipe, o Racing. “Eu achava que era inverossímil”, recorda Sacheri. A cena é inesquecível. A câmera baixa das nuvens até o estádio e o assassino é perseguido por Ricardo Darín e Guillermo Francella pelas escadas até ser encurralado no campo do jogo.
Oito anos depois, a realidade é ainda mais contundente que esse roteiro: na Argentina, 217 foragidos foram localizados este ano nos estádios por meio de um novo sistema, o Tribuna Segura, que controla o documento nacional de identidade (DNI) nos acessos. Na maioria, sabem que são procurados, mas não podem deixar de ir ver sua equipe. Como explica o personagem de Francella, “o sujeito pode mudar de cara, de família, de namorada, de Deus. Mas há uma coisa que não pode mudar: não pode mudar de paixão”. Até há pouco tempo, os torcedores, sobretudo os violentos, entravam arrasando. Nos vídeos policiais é possível ver como a barra brava (torcedores violentos) chega, rompe as cercas, ordena à polícia que se afaste e entra em massa sem que ninguém controle nada. Mas o Governo de Mauricio Macri mudou o sistema. Pôs em ação a Gendarmeria (polícia militar), deu aos agentes telefones com um programa que identifica o DNI e obrigou todos a entrarem com documentos de identificação.
No primeiro dia caiu um homem no Ríver acusado de um duplo homicídio, recorda Guillermo Madero, responsável pelo programa Tribuna Segura. Desde então, todos os fins de semana são presos entre cinco e dez. Alguns são assassinos, outros ladrões, homens que cometeram abusos, estupradores como o personagem de O Segredo de Seus Olhos. São apenas algumas das mais de 50.000 pessoas com uma ordem de captura judicial contra elas na Argentina.
“Somos o grupo que encontra mais foragidos. É difícil compreender como alguém com ordem de busca e captura se dispõe a ver um River-Boca com 1.300 policiais. Mas são assim. O argentino tem tanta paixão que quando quer ir ao futebol nada o detém. Quando os pegamos, se entregam em seguida. Um policial me disse que quando se pede o DNI a um barra ou a esse tipo de delinquente você o desnuda”, conta Madero. O programa é pensado para não deixar entrar nos estádios os 3.500 torcedores violentos vetados por seus antecedentes violentos. Os dados são cruzados com os foragidos da Justiça e na rede caem assassinos e ladrões. Alguns tentam se esquivar dizendo que não trouxeram o documento. Pedem-lhes o número e dão um de um parente. Pode ser pior. Um jovem de Salta, um torcedor violento cuja entrada era proibida, deu o DNI de seu tio. Mas ele era procurado por roubo. Chamaram-no para que viesse buscar o sobrinho detido, e foi preso.
Outros têm apoios fores. Daniel Ifrán, procurado por violência de gênero, ameaças e espancamento de sua ex-esposa, foi ver seu querido Patronato de Paraná, em Entre Rios. Foi acompanhado do irmão Octavio, diretor do principal presídio da cidade. Ao ser comprovada a ordem de captura, o alto funcionário quis salvar o irmão. Disse que Daniel “já havia acertado suas contas com a Justiça”, mas ele acabou preso. Madero conta que os controles começaram nas arquibancadas mais baratas e apareceram muitos criminosos comuns. Agora estão estendendo-os aos setores mais caros e se deparam com alguns colarinhos brancos.
Paixão desenfreada
Para Sacheri, um fanático por futebol e um dos escritores mais respeitados do país, essa onda de prisões explica muitas coisas. “É uma mistura de uma paixão desenfreada, algo que não podem controlar. Mostra também que as instituições não nos inspiram nem medo nem confiança nem respeito. Os caras acreditam que nunca vão ser encontrados em um estádio.”
O futebol é o último reduto de pertencimento de uma sociedade esfacelada pela crise, explica Sacheri. “A área metropolitana de Buenos Aires teve tal nível de deterioração nos últimos 50 anos que a identidade dos homens foi sendo despojada de outros traços que antes eram mais definidos, de classe, de perfil de trabalho. Toda a ideia de progresso se diluiu e o clube é a grande reserva de identidade. O que vocês são na vida? São torcedores do Morón. Por isso caem de forma tão simplória e vão ao estádio mesmo com pedido de busca contra eles”.
Sacheri está surpreso com o enfoque positivo que os espectadores dão a essa cena de O Segredo de Seus Olhos. “O assassino tem uma paixão pelo Racing, mas também outra horrenda por essa mulher que acaba matando. A paixão é vista com simpatia, mas eu a queria retratar como algo que pode ser muito destrutivo, uma prisão.” É aí onde vão parar esses torcedores empenhados em confirmar a cena crucial do filme de Campanella.
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