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Tem alguém redesenhando as fronteiras?

Europa e Oriente Médio assistem nos últimos anos a várias tentativas de redefinição de fronteiras. A questão é se são movimentos espontâneos ou respondem a um plano com fins geoestratégicos

Jorge Marirrodriga
Manifestação em Erbil, capital do Curdistão iraquiano.
Manifestação em Erbil, capital do Curdistão iraquiano.CHRIS MCGRATH (GETTY)

A imagem de um grupo de pessoas inclinadas sobre um mapa ao redor de uma mesa enquanto repartem um país, um continente ou o mundo inteiro entre si se tornou realidade em várias ocasiões ao longo da história. Podem mudar as luzes que iluminam a cena, as roupas dos protagonistas, seu aspecto físico e as línguas que falam, mas no fim é sempre a mesma coisa. Sobre a representação de um território, e independentemente do que esteja acontecendo ali na vida real naquele instante, o destino de milhares ou milhões de pessoas fica marcado sem que elas saibam.

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Não faz tantos verões e os poloneses mal podiam suspeitar, enquanto esperavam suas colheitas amadurecerem, que os ministros das Relações Exteriores da Alemanha nazista e da União Soviética estavam dividindo seu país e decidindo seu destino, dependendo de onde caísse o traço a lápis vermelho em relação à cidade em que viviam. Poucos anos depois, enquanto o objetivo da maioria dos civis europeus era simplesmente sobreviver à guerra mais um dia, Churchill, Stálin e Roosevelt definiam a geografia política do continente — e de quase todo o resto do planeta — para praticamente o restante do século XX.

Hoje mesmo vão morrer muitas pessoas na África em combates que se originam de uma série de elegantes reuniões realizadas em Berlim entre 1884 e 1885, e a língua materna de milhares de recém-nascidos hoje também na América Latina será o espanhol ou o português simplesmente porque há cerca de 500 anos os governantes de dois países do outro lado do Atlântico estabeleceram o Tratado de Tordesilhas, dividindo como se fosse uma laranja o recém-descoberto redondo mundo.

Do ponto de vista da vida humana, as fronteiras podem parecer permanentes — e algumas até eternas —, mas na realidade estão se movendo constantemente. Em certo sentido, o mapa político imita o mapa físico, que também muda — as baías são aterradas, a linha da costa avança ou recua, as montanhas se elevam —, mas o cidadão mal percebe que essa transformação política é feita com mais velocidade que na natureza. É o que acontece, por exemplo, com o projeto representado pela União Europeia. Um cidadão espanhol pode viajar sem apresentar nenhum papel ao território que hoje é a Lituânia quando há 50 anos nem o passaporte lhe abriria as portas. Simplesmente era proibido. O problema, como na natureza, com seus terremotos, vem quando essa mudança é rápida. Com sorte, como no restabelecimento das repúblicas bálticas depois da queda da URSS, não há quase incidentes. Com azar, porém, como no caso da Iugoslávia, estouram guerras sangrentas.

Escócia e Catalunha são dois exemplos. Enquanto isso, a Lombardia realizará neste mês um referendo de autonomia na Itália

Estamos assistindo nesses últimos anos uma tentativa acelerada de redefinição de fronteiras em duas zonas específicas do mundo. Em uma delas, o Oriente Médio, pode-se dizer que o plano desenhado a lápis de cor em 1916 sobre um mapa do Império Otomano por Mark Sykes e François Picot — ministros das Relações Exteriores do Reino Unido e da França, respectivamente — sobreviveu durante 100 anos abalado por guerras entre aqueles que não aceitaram totalmente e sem que a maior parte da população afetada soubesse o que é democracia. O referendo de independência realizado em setembro no Curdistão é o último passo sério de abolição de tal tratado. Em um 3 de janeiro há 111 anos, os curdos ficaram divididos entre quatro países diferentes. Agora, com um território próprio, independente de fato desde a guerra do Golfo de 2003, apesar de nominalmente integrados ao Iraque, os curdos se dispõem a realizar oficialmente essa modificação de mapas. Paradoxalmente, foram seus piores inimigos — os jihadistas do Estado Islâmico — os primeiros a desafiar explicitamente a ordem estabelecida há um século. De fato, uma de suas primeiras ações foi remover os marcos de fronteira entre Iraque e Síria e declarar abolido o centenário acordo franco-britânico.

Apesar de obviamente estarem situados nas antípodas por todo tipo de questões e sem que sejam em nenhum caso equiparáveis, os dois movimentos têm em comum o propósito de transformação radical das fronteiras sem que, em princípio, isso responda a um plano previamente acordado ou desenhado por terceiros. Os dois proclamam ter chegado a essa conclusão como reivindicação histórica. E são conscientes de que a modificação de fronteiras não acaba aí. Para os curdos, o Curdistão iraquiano é apenas uma porção da fragmentada nação curda anterior ao reparte. O Estado Islâmico é um pouco mais ambicioso: quer um califado mundial.

O outro cenário é a Europa, onde a dramática reordenação do mapa provocada depois do fim da União Soviética pode não ter terminado ainda. Recentemente, essa região parece ter entrado em uma segunda fase de consequências imprevisíveis. A primeira deu origem ao nascimento (ou renascimento, conforme o caso) de uma quinzena de países, às vezes de comum acordo e em outras vezes nem tanto, e em algumas depois de guerras de secessão cruéis. E assim como no Oriente Médio, tudo isso aparentemente foi fruto de um movimento “de baixo para cima” sem um plano preconcebido por parte dos líderes do momento, que, segundo a versão oficial, se limitaram a reagir diante dos acontecimentos que se desenvolviam nas ruas. No entanto, basta estudar cada caso em detalhes para, em pouco tempo, ver surgir dúvidas sobre a espontaneidade da maioria desses movimentos. O curioso é que, quando mal assentou o pó daquele cataclismo geográfico, as peças do mapa da Europa Ocidental começam a se mover, como em um quebra-cabeças sacudido a fim de que se desmonte.

Apesar da memória informativa ser curta, a primeira grande mudança do mapa europeu ocidental poderia ter se produzido já se não fosse pelos poucos mais de 300.000 votos que em setembro de 2014 deram vitória ao "não" para a independência da Escócia. O processo de independência da Catalunha é a segunda grande tentativa — de forma diferente — de fazer surgir um novo Estado a partir de outro historicamente consolidado. E não é o final. A Lombardia realizará neste mês um referendo de autonomia inédito na história recente da Itália. Um evento cujo verdadeiro significado pode se transformar em questão de dias em algo muito diferente do planejado, dependendo, por exemplo, do que aconteça na Catalunha. Há décadas, Flandres avança a passos largos para uma desconexão formal da Valônia (na Bélgica). Só no interior da UE, a lista é tão interminável quanto é rica a história do continente.

Com um território próprio, integrado ao Iraque desde 2003, os curdos se dispõem a implantar essa modificação de fronteiras

Será que assistimos a um ressurgimento vitorioso espontâneo de projetos nacionais históricos que viram sua oportunidade perdida diante do surgimento dos modernos Estados-nação e agora encontraram finalmente seu momento? Ou, como aconteceu antes ao longo da história, tudo responde mais a um projeto discutido e acordado diante de um mapa com alguma finalidade estratégica? Talvez nenhuma das questões exclua a outra. Ou a existência de ingerências russas na Europa, como parece estar acontecendo, não significa necessariamente que estas respondam a uma Conferência de Yalta, de Berlim ou um Acordo Sykes-Picot oculto. O Kremlin pode estar simplesmente aproveitando uma corrente para utilizar uma nova e poderosa arma — a desinformação cibernética em massa — para enfraquecer um bloco que há apenas 25 anos proclamou sua vitória sobre Moscou. No entanto, o fato de que não se conheça um projeto geral de mudança de fronteiras também faz desta uma hipótese descartável. Como sempre, há uma pergunta cuja resposta pode nos aproximar da verdade. Quem se beneficia?

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