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Crítica
Género de opinião que descreve, elogia ou censura, totalmente ou em parte, uma obra cultural ou de entretenimento. Deve sempre ser escrita por um expert na matéria

O Eduardo Cunha imaginário

Livro que simula diário do ex-presidente da Câmara na cadeia só acerta quando parte para a sátira aberta

Rodolfo Borges
A capa do livro editado pela Record.
A capa do livro editado pela Record.Reprodução

É preciso começar elogiando a coragem e a disposição de Eduardo Cunha (pseudônimo) — o nome real do autor já é conhecido, mas não sou eu quem vai estragar a brincadeira — de emular uma da figuras mais intrigantes e complexas da política brasileira nas últimas décadas. Em Diário da Cadeia - com trechos da obra inédita Impeachment (Editora Record, 2017), o escritor simula anotações assinadas pelo deputado cassado e condenado a mais de 15 anos de prisão. E cai fragorosamente na própria armadilha de tentar incorporar um político cuja essência ele parece não conseguir acessar para além da superfície exposta pelas câmeras de televisão. Para encarar Cunha (ou qualquer pessoa), é preciso se livrar de preconceitos, colocar-se do lado dele e, diria até, admirá-lo, sob o risco de subestimar uma personalidade tão forte que talvez só encontre par hoje na República nas figuras do senador Renan Calheiros (PMDB-AL) e do ministro do Supremo Gilmar Mendes.

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A faceta pública de Eduardo Cunha está toda no livro, que, para não deixar dúvidas, a expõe de forma exaustiva. O homem devoto a Deus, desconfiado, frio e calculista, autoconfiante, de formação cultural limitada — escancarada por meio de erros e erros gramaticais — e de destacada sagacidade (nem tão destacada assim pelo diário). Mas a mistura insistente de tudo isso fica longe de tangenciar a alma do ex-presidente da Câmara. Para resumir: enquanto avançava na leitura, eu ia me convencendo de que Eduardo Cunha nunca escreveria um diário. Caso escrevesse, não seria nesses termos. E, se o fizesse nesses termos, nunca o publicaria.

Diante do resultado, o receio dos advogados do Eduardo Cunha (real), de que seria possível confundir o deputado cassado com seu emulador, perde todo o sentido — após ter sido exposto, o autor disse que sua ideia era deixar pistas, como os erros de português, para indicar que não era o real Eduardo Cunha a escrever, mas essa é uma posição confortável demais para um polemista. Do imbróglio judicial que ameaçou a publicação, resta apenas a publicidade involuntária que processos como esse têm rendido a obras literárias no Brasil.

Cunha nunca se exporia tão fragilizado como aparece no livro — a não ser que tivesse uma meta clara ao fazê-lo. É preciso acreditar em tudo o que ele disse nos últimos anos (e esquecer que fez campanha para Dilma Rousseff em 2014 e que durante meses protegeu seu Governo do processo de impeachment do qual viria a se tornar o artífice) para retratá-lo como alguém que acredita piamente no liberalismo econômico. É possível argumentar que, ao escrever seu diário, o Eduardo Cunha imaginário veste a mesma máscara que usou nos meses anteriores à prisão, mas, para tanto, sua escrita precisaria ser completamente diferente: cínica, recheada de deboches provocativos e bem mais cuidadosa.

Dentro desses limites, os piores momentos do livro são aqueles em que se revelam leituras equivocadas (ou no mínimo questionáveis) sobre a política brasileira recente — algo que alguém como Cunha dificilmente faria. Nesse âmbito se encaixa a tentativa de aproximar afetivamente o peemedebista dos membros do Movimento Brasil Livre, do procurador Deltan Dallagnol, que chefia a força-tarefa da Operação Lava Jato, e da advogada Janaína Pascoal, uma das autoras do pedido de impeachment — nos dois últimos casos, o autor se vale de uma visão alegórica da religião para tanto. A comparação entre a rigidez de Cunha e a firmeza do juiz Sérgio Moro é outra passagem que sairia melhor da boca dos advogados do ex-presidente Lula do que da caneta do deputado cassado.

O resultado disso tudo é uma caricatura que, como qualquer caricatura, tem seus melhores momentos quando exagera de forma escancarada, sem sequer tentar acertar o alvo que o autor vinha errando durante praticamente toda a primeira metade do livro. As ironias com o editor da obra, Carlos Andreazza, a revelação do "verdadeiro" motivo da morte de Paulo Cesar Farias (o tesoureiro da campanha presidencial do hoje senador Fernando Collor de Mello), o descontrole de Cunha diante de um jornalista contratado para ser seu ghost-writer... É no exagero, na sátira aberta, que o autor se aproxima mais da persona de Cunha. O resto do livro deixa um gosto de debate político aguado, superficial. E essa é uma pena que Cunha, já condenado a mais de uma década de cadeia, não merece.

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