O classicismo transgressor do mestre Irving Penn
Ele revolucionou a fotografia de moda no início dos anos 1940, mas sua experiência criativa abrangeu diferentes áreas. Mostra que estreia no IMS, em São Paulo, comemora seu centenário
“Uma boa fotografia é aquela que toca o coração do espectador e o transforma depois que a vê”, dizia Irving Penn. Explicação simples de um dos grandes mestres da fotografia do século XX, que por quase sete décadas não deixou de surpreender o público através de imagens de enganosa simplicidade e intransigente e austero classicismo, capazes de desafiar as convenções da linguagem fotográfica com o espírito inovador da vanguarda. Tarefa complexa.
Ele considerou a fotografia o meio para mergulhar na história visual do homem. Um elo adequado entre o Paleolítico e um presente multicultural. Em suas imagens, o tempo para. É eterno. “Porque Penn bebeu da arte de todas as épocas, suas imagens são carregadas de profundas conexões históricas, e ainda que sejam praticamente invisíveis em uma primeira consideração, todos as pressentimos de maneira instintivamente, diz a curadora Maria Morris Hambourg. “Essa aceitação histórica, juntamente com a autoridade do talento de Penn, é o que confere a suas fotografias aquela qualidade atemporal que identificamos na grande arte.”
Morris é a curadora de Irving Penn: Centennial (Irving Penn: Centenário), exposição inaugurada em abril de 2017 no Metropolitan Museum de Nova York e que chega a São Paulo nesta terça-feira, 21 de agosto, no Instituto Moreira Salles (IMS), onde fica em cartaz até o dia 25 de novembro. A mostra celebra o centenário do célebre criador nascido em 16 de junho em Plainfield, Nova Jersey, Estados Unidos e aspira a ser a mais extensa retrospectiva já realizada do artista norte-americano, que inclui tanto as obras mais grandiosas quanto as mais desconhecidas, de suas séries principais.
“Você está perdido no momento em que sabe qual será o resultado”, dizia Juan Gris. De forma intuitiva, Penn sabia dessa máxima do pensamento criativo quando, no início de sua carreira, trabalhando com Alexei Brodovitch, de graça, na revista Harper’s Bazaar, um estagiário deixou cair no chão, acidentalmente, um negativo do designer russo. Penn lembrava que, quando levou o negativo para o seu mestre, este olhou para ele e, sem se perturbar, disse: “faz parte do meio”. “Surpreenda-me!” pedia Brodovitch com frequência; este inimigo do clichê e da imitação, que na época redesenhava o design gráfico dos EUA como diretor artístico, e com quem tinha tomado contato quando foi seu professor no Pensylvania Museum and School of Industrial Art. Por causa da situação financeira precária, Penn dormia no estúdio de seu mentor. À noite, ele examinava meticulosamente uma coleção de publicações que incluíam Arts et Métiers Graphiques, Cahiers d’Art, Verve e Minotaure, iluminando-o nos caminhos da reluzente vanguarda parisiense; especialmente o surrealismo.
Penn não teria se tornado Penn sem Brodovitch, e também não o seria sem Alexander Liberman. Este era outro um exilado russo. Levou a arte de vanguarda para as páginas da Vogue, trabalhando como diretor de arte; combinando a sofisticação europeia ao pragmatismo norte-americano. Penn seria uma figura fundamental nessa façanha. Foi Liberman que incentivou o jovem norte-americano a fazer as próprias fotografias, quando trabalhava como designer para a revista, os fotógrafos (entre eles Horst, Cecil Beaton e Erwin Blumenfeld) rejeitavam suas propostas para capa. Sua primeira capa para a famosa publicação da Condé Nast saiu em 1943: uma composição com bolsa, lenço e cinto, em cores.
Sua reputação foi forjada através das páginas da Vogue mediante a fotografia de moda, naturezas-mortas e retratos. Ele faria mais de 150 capas ao longo de sua carreira. Desde o início estabeleceu os padrões estéticos para a elegante moda dos anos 1940 e 1950, com imagens maravilhosas de linguagem contundente, meticulosamente orquestradas, onde os tecidos adquirem uma qualidade escultórica que transmuta seus modelos, transformando-as em deusas clássicas contemporâneos. A roupa, mais que um artigo a ser usado, é sintetizada em formas que revelam uma silhueta. Sem dúvida, sua modelo favorita foi Lisa Fonssagrives, com quem se casou em 1950. Ela estrelou algumas de suas fotos mais icônicas.
Entre 1946 e 1948, Liberman encomendou-lhe uma série de retratos das personagens mais relevantes do mundo da cultura na época. Em seu estúdio, ele construiu um ângulo vertical de fundo, como um canto onde posicionava seus modelos. Essa localização incômoda potencializava a expressão do modelo e, aliada às distorções produzidas pela perspectiva e uma iluminação bem cuidada, conferia às personagens um poder indiscutível. “Muitos fotógrafos pensam que seu cliente é o tema”, dizia Penn em entrevista ao The New York Times em 1991. “Meu cliente é uma mulher no Kansas que lê a Vogue, é ela que tento intrigar, estimular, alimentar... Talvez um retrato severo não seja, para o fotografado, a maior alegria do mundo, mas é extremamente importante para o leitor.”
A necessidade de liberdade para experimentar esteve muito presente durante toda a vida do artista. Por isso soube trabalhar simultaneamente como artista e como fotógrafo de revistas e publicidade, definindo uma pauta que hoje pode nos parecer habitual, mas não era em seu tempo. Sua série de nus femininos faz parte de um de seus projetos pessoais. Sua câmera se deleitava em corpos roliços retratados sem nenhum pudor em close-ups de textura crua e tom realista. “Esses nus não só se rebelavam contra as convenções da beleza da metade do século, como também iam contra a prática fotográfica, onde ainda se buscava uma boa resolução no detalhe e uma representação realista”, diz Morris. Liberman recusou-se a publicá-las, exceto uma. Edward Steichen, então curador do MoMA, também os rejeitou.
“Fotografar um bolo pode ser arte”, defendia. Assim, buscou beleza no perecível, na fruta madura, nas pontas de cigarro, nos objetos descartados ou em crânios de animais. Ele também voltou suas lentes para culturas exóticas, retratando os índios quíchua no Peru, e as tribos da Papua-Nova Guiné, cuja estética da beleza desafiava os cânones ocidentais. Mas em tudo isso sempre houve uma busca pela perfeição. Na introdução ao livro Passage: A Word Record, Liberman lembra esse desejo, quando em um projeto no qual Penn devia fotografar umas taças quebrados em uma bandeja, ele insistiu que, por uma questão de autenticidade, as taças tinham de ser do caríssimo cristal Baccarat; assim, várias dúzias de taças caíram no chão antes de Penn ficar satisfeito.
Morreu em 2009 depois de trazer, como diria a crítica de arte Rosamond Bernier, “uma poesia para a imobilidade”.
Serviço
Irving Penn: centenário
Abertura: 21 de agosto, às 18h
Visitação: de 22 de agosto a 25 de novembro
Galerias 2 e 3
Entrada gratuita
Endereço: Avenida Paulista, 2424
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