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Autor da chacina em Campinas expõe ódio a mulheres a quem chama de “vadias”

Em carta, Sidnei Ramos de Araújo ironiza a lei Maria da Penha chamando-a de “Vadia da Penha”

Velório e enterro coletivo das vítimas da chacina
Velório e enterro coletivo das vítimas da chacinaWagner Souza (Futura Press/Folhapress)

Faltavam poucos minutos para 2017 quando o técnico de laboratório Sidnei Ramis de Araújo, 46 anos, estacionou seu carro na frente de uma casa térrea no Jardim Aurélia, bairro de classe média na cidade de Campinas, no interior de São Paulo. Armado com duas pistolas e carregando 10 bombas caseiras, pulou o muro do local, onde acontecia uma festa de ano-novo, e assassinou sua ex-mulher Isamara Filier, 41 anos, seu filho João Victor, 8, e mais dez pessoas. Depois da chacina, Araújo se matou com um tiro na cabeça. A residência, onde aconteceu a tragédia era de uma das vítimas do assassino. Dois dias depois do crime hediondo, as informações são fartas e não deixam dúvidas de que se trata de mais um caso de violência contra a mulher – em um país com um dos maiores índices de homicídios femininos no mundo.

Em cartas e áudios deixados pelo atirador, ele justifica os doze assassinatos ao dizer que buscava vingança por ter perdido a guarda do filho Victor depois de ser denunciado por abuso sexual contra a criança. A denúncia, feita por Isamara em 2012, estava sob investigação da polícia. No material, publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, Araújo sustenta um discurso de ódio repleto de misoginia, em que trata a ex-mulher e todas as mulheres da família por “vadias”. “Eu tentei pegar a vadia no almoço do Natal e dia da minha visita, assim pegaria o máximo de vadias da família, mas como não tenho prática não consegui”, disse em uma das cartas.

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Ao todo, Araújo disparou contra 15 familiares e amigos de Isamara. Dos 12 mortos, nove eram mulheres. Além das três vítimas que estão hospitalizadas sem risco de vida, mais três conseguiram escapar ilesas. Dois adolescentes que se esconderam em um banheiro relataram que o filho do atirador disse: “Você matou a mamãe”. Logo depois, ouviram os disparos que mataram Victor. “Filho, papai te ama muito. Julguem o que quiser julgar, cada um tem seu jeito de amar. Deus não crucificou o filho dele por amor aos outros filhos, como fala na Bíblia? Eu não vou deixar você sofrer na mão dessa vadia mais não, filho”, Araújo escreveu em uma das cartas. Nesta segunda-feira, um velório e enterro coletivo aconteceu em Campinas.

Não é necessária boa memória para lembrar casos de violência contra mulher que ganharam repercussão nacional em um passado muito próximo. No último dia 14 de dezembro, por exemplo, o gerente de um bar em São Paulo, Willy Gorayeb Liger, 27 anos, estuprou e matou com golpes de taco de beisebol a militante feminista Débora Soriano de Melo, 23 anos. Em junho, uma menor de idade foi vítima de um violento estupro coletivo (filmado e publicado posteriormente na internet), no Rio de Janeiro. Quando o assunto é assassinato de mulheres, o Brasil ocupa a quinta posição em um ranking de 83 nações, segundo dados do Mapa da Violência 2015. Em 2013, o país atingiu uma taxa média de 4,8 homicídios a cada 100.000 mulheres. No levantamento anterior, realizado em 2010, o Brasil estava na 7ª posição do mesmo levantamento.

Um dossiê da Agência Patrícia Galvão, organização voltada para defesa dos direitos da mulher, revela que a cada 90 minutos acontece um caso de feminicídio no Brasil – quando o assassinato de uma mulher é cometido por razões que envolvem “violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. Especialistas e pesquisadores do assunto dizem, contudo, que a realidade brasileira pode ser ainda pior, pois existem poucas estatísticas sobre a questão. A lei do Feminicídio, por exemplo, foi sancionada apenas em 2015. A Lei Maria da Penha – chamada de “lei vadia da penha” em uma das cartas de Araújo –, que busca aumentar o rigor das punições sobre crimes domésticos, e ensejou a criação de órgãos e aparelhos específicos para o atendimento de mulheres, é de 2006.

Instituto Patrícia Galvão

Os recentes avanços da legislação brasileira vieram seguidos de ampla rejeição de setores conservadores da sociedade, o que fez com que, depois da chacina do ano-novo, diversas pessoas lembrassem que as cartas de Araújo guardam muitas semelhanças com discursos de ódio publicados diariamente nas redes sociais. Não à toa, comentários de leitores nos sites que noticiaram o crime hediondo buscam justificar os assassinatos. Um deles, que até o início da tarde desta segunda-feira já somava ao menos 22 curtidas, resume bem o estado das coisas no país: “Li toda carta do assassino. A grande culpada é essa ex-mulher que tirou a guarda do filho. Devia ser uma capeta. Essas mulheres adoram dar uma de vítimas e saírem por cima. Maldito feminismo”.

“A internet é um espaço público e, como todo espaço público, reflete comportamentos e crenças da vida privada. É muito representativo que as cartas dele tragam elementos de discursos de ódio das redes sociais”, diz a promotora de Justiça Gabriela Manssur. Nas mensagens que Araújo deixou, ele comenta sobre política e acontecimentos da vida nacional com o mesmo teor de raiva que trata Isamara e outras mulheres: “A Justiça brasileira é igual ao Lewandowski (um marginal que limpou a bunda com a constituição no dia que tirou outra vadia poder) um lixo!”. Durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff, uma discussão sobre o teor misógino de xingamentos dirigidos a ela foi tema no Brasil. “Independente de minha opinião política, essas eram ofensas direcionadas às mulheres e não à presidenta. Esse tipo de comportamento é simbólico das redes, não por acaso, a maior parte dos casos de injúria que atendo começa em xingamentos semelhantes na internet”, diz Manssur.

Segundo a promotora, que também atua em movimentos feministas, o ódio expresso por Araújo é, também, ódio às conquistas dos últimos anos, como as já citadas Lei Maria da Penha e do Feminicídio, e à presença feminina em posições de destaque. “Ele sentiu que ela era apoiada pela Justiça e que recebia apoio também de um círculo de pessoas que ele conhecia. Isso deu uma relativa força para ela”, diz Manssur. Nas cartas, Araújo deixou clara sua vontade de inspirar outros pais que tenham tido o que ele chama de “direito de ser pai” impedido. “A vadia foi ardilosa e inspirou outras vadias a fazer o mesmo com os filhos, agora são os pais que irão se inspirar e acabar com as famílias das vadias”, disse.

"Em datas festivas, feitas para comemorar, os homens festejam e as mulheres apanham"

Manssur conta que entre o Natal e a passagem do ano recebeu ao menos oito pedidos informais de ajuda de mulheres que foram estupradas ou sofreram agressões durante o período de festas de final do ano. “Isso diz tudo sobre como a sociedade brasileira enxerga a mulher: em datas festivas, feitas para comemorar, os homens festejam e as mulheres apanham”, diz. Para ela, a legislação brasileira é moderna, mas precisa ser mais bem aplicada.

“O modo como a mulher é vista deve mudar por quem trabalha com a Lei Maria da Penha, as mulheres têm que ser ouvidas urgentemente, afinal cerca de 90% dos abusos têm como única prova a palavra da vítima“. Não era o caso de Isamara, que teria enviado provas concretas para a justiça. Segundo o UOL, a decisão Judicial de 2012, que tirou a guarda do filho de Araújo, cita um vídeo, juntado aos autos, que comprovaria os abusos sexuais sofridos pela criança. Ainda segundo o portal, ele não foi considerado na decisão final, porque o juiz não tinha um equipamento compatível com o formato do vídeo enviado.

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