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Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

Depressão de fim de ano? Combata com panetone

Em versão clássica, com frutas, ou achocolatado, esse pão doce de origem italiana é festivo por natureza

Panetone é uma daquelas coisas capazes de dividir os seres humanos em dois grupos (não importa quais). Os que gostam do recheio com frutas cristalizadas e passas, os que detestam e só comem chocotone. Os que consomem invencionices e criações bizarras, os que preferem a tradição. Os que se alegram em vê-los chegando aos supermercados, os que entram em pânico por caírem em si de que o fim do ano está próximo.

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De que lado eu fico? Aproveitando a época de eleição, declaro os meus votos: sou pela fórmula clássica, com frutas; desconfio de receitas criativas; e gosto de ver as caixas e pacotes povoando e colorindo as gôndolas. Em 2016, as movimentações começaram em setembro. O que passa na cabeça dos comerciantes, ao antecipar cada vez mais esse clima de festas? Há fatores objetivos, como o aumento comprovado das vendas: tendo o produto à mão, o público compra antes, come, e volta a comprar para a última semana de dezembro. Vem funcionando, com crescimento real, ano a ano. E estratégias um tanto esotéricas: panetones e afins, em tese, criariam uma atmosfera convidativa ao consumo de outros artigos e, claro, antecipam a escolha dos presentes.

O fim do ano, esse ente enigmático, atiça em muita gente a consciência de metas não realizadas (será que ainda dá tempo de cumpri-las?). Desperta um pendor para inventários, balanços, retrospectivas. Relembra que, em poucas semanas, será o momento de reunir família e amigos, de renovar votos, de constatar que a vida é imperfeita – e que isso fica mais claro nas celebrações, digamos, institucionais. Panetones na vitrine e zeladores montando a decoração natalina nos prédios, portanto, são o que as revoadas de siriri representavam para gerações anteriores: indicam que, logo, logo, teremos ceia e réveillon.

Também me aflijo com a síndrome das festas, mas não reclamo da presença prematura dos panetones, pelo contrário. Por mim, eles poderiam ser produzidos o ano inteiro – em São Paulo, uns poucos lugares têm suprimento constante, a qualquer época; entre eles, a decana Di Cunto, na Mooca. Não apenas defendo a compra, mas a possibilidade de fazer a receita em casa. Fica muito gostoso, posso garantir, embora o resultado seja diferente de um produto profissional. A vantagem das fornadas caseiras? Escolher os ingredientes, montar o seu mix de frutas, entre secas e cristalizadas, divertir-se.

"Também me aflijo com a síndrome das festas, mas não reclamo da presença prematura dos panetones, pelo contrário. Por mim, eles poderiam ser produzidos o ano inteiro"

Aprecio ainda o fato de a história do panetone ser um tanto imprecisa, com versões diferentes, geralmente remetendo à época medieval. Como a do padeiro milanês que, determinado a impressionar seu patrão (e futuro sogro, chamado Toni), criou um pane di Toni para celebrar o Natal. Numa variação da história, o jovem padeiro (desta vez, ele mesmo apelidado Toni), cansado depois de muitas horas de trabalho, confundiu receitas e acrescentou uvas passas numa espécie de pão doce. Funcionou e o equívoco resultou numa bem-sucedida surpresa. Outra vertente, a mais aceita, atesta que foi simplesmente uma receita de encomenda, preparada por um padeiro (adivinhem o nome? Sim, Toni!), incumbido de elaborar um pão mais enriquecido para alegrar a ceia do Duque Ludovico Sforza, soberano de Milão, já no Renascimento.

O que se sabe, no entanto, é que os primeiros panetones eram maiores e mais baixos. As cintas de papel que dariam o formato mais verticalizado seriam adotadas só a partir do século XIX. Independentemente da comprovação da existência do aclamado Toni, o nome representaria apenas um aumentativo, um jeito de descrever aquele pãozão comemorativo, recheado com frutas. As fórmulas originais, por sua vez, levavam muito menos manteiga e ovos do que as atuais. É provável que muitos fãs de agora, caso provassem a receita de centenas de anos atrás, se desencantassem com o sabor e, em especial com a textura – para a maioria, panetone tem a ver essencialmente com uma massa leve, perfumada, gorda.

Sou partidário da consagrada combinação entre frutas cristalizadas e uvas passas. Mas sou minoria em minha casa, onde a versão com chocolate é a preferida. Provoco, afirmando que chocotone é para paladares infantis. E recebo de volta colocações como “panetone é coisa de velho”. Lembrei de T.S. Eliot, que se posicionava como “clássico em literatura, anglicano em religião, monarquista em política”. Aposto que ele faria um adendo, se perguntado fosse: “em panetones, só passas e frutas”.

Confesso, no entanto, que demorei um tanto para me converter ao panetone mais canônico. E foi quase um rito de passagem para deixar de ser criança. Um belo dia, parei de arrancar e descartar frutinha por frutinha. Deixei de só aproveitar o miolo fofo e passei a devorar as fatias integralmente. Foi quase como descobrir que o amargor da cerveja, no fundo, é bom e dá prazer. Indo além, um bom panetone, quando fermentado lentamente (pelo método natural, se possível), quando bem aromatizado com cascas de frutas cítricas, se torna uma das grandes iguarias do mundo dos pães.

Sobre o chocotone, o que dizer? Acho a combinação recheio-massa mais enjoativa. No panetone, as frutas atenuam o sabor da manteiga, trazem alguma acidez, conversam melhor com as notas características do seu miolo. Se for aquele chocotone anabolizado, com quantidades extras, tantos nas “gotas”, como na cobertura, me animo menos ainda. Entretanto, que fique bem claro: mil vez a versão com chocolate (que também é uma receita consagrada) do que os panetones ditos criativos – como os recheados de morango com sorvete ou, pasmem, de torresmo – que passaram a assolar os mercados.

Não dá para esquecer ainda do pandoro, sem frutas nem chocolate, apenas massa. Nesses tempos de debate político polarizado, seria ele o “isentão” dos quitutes de fim ano? No mínimo, talvez ele garanta um certo consenso. Mas pandoro, por mais que pareça da família, não é panetone. Natural do Vêneto, tem como marca registrada o miolo amarelinho, com gemas e bastante manteiga, e um acento mais forte na baunilha.

Panetone, afinal, é bolo ou é pão? A dúvida vem de longe e é compreensível. É adocicado e mais macio, características que associamos aos bolos. Mas ele pertence à família da panetteria italiana: tem fermentação (natural ou biológica), longos descansos e, principalmente, desenvolvimento de glúten. Só para explicar melhor: de um bolo espera-se que seja fofo, desmanche ao toque do garfo, tenha aquela microtextura característica. Por isso ele não é sovado nem batido intensamente, para não ativar a rede proteíca da farinha de trigo (o glúten) que resulta em elasticidade e interior mais aerado. Mal comparando, o panetone se insere na linhagem dos pães doces, evocando um certo parentesco com os exemplares de massas mais ricas (à base de manteiga e ovos), como o brioche.

Retomando um dos pontos iniciais deste artigo, será que eu mesmo também não estou sendo apressado, querendo escrever sobre panetone justo agora? Creio que não, e o primeiro argumento eu já apresentei: panetone é bom o ano inteiro. O segundo? É para dar tempo de praticar a receita logo abaixo, e você ter o orgulho de servir sua própria produção na ceia. Eu sei que, no início, vai dar preguiça. E parecerá muito mais razoável ir até o mercado mais próximo e comprar pronto. Mas tente, aventure-se. Panetone é festivo por natureza.

Luiz Américo Camargo é comentarista e consultor gastronômico, especializado em eventos e produção de conteúdo. Foi um dos fundadores do Paladar, marca de gastronomia de O Estado de S. Paulo. É também colunista do jornal Zero Hora.

Panetone caseiro

Receita de Luiz Américo Camargo*

- 500 g de farinha de trigo branca
- 160 ml de leite
- 1 ovo inteiro
- 2 gemas
- 50 g de manteiga
- 80 g de açúcar
- 6 g de sal
- 8 g de fermento biológico seco instantâneo
- Raspas de um limão siciliano e de uma laranja grande (tipo bahia)
- 100 g de passas
- 100 de frutas cristalizadas
- 1 colher de sopa de essência de baunilha

1) Numa tigela, dilua o fermento no leite, que não deve estar gelado (basta aquecer levemente, deve estar à temperatura ambiente.

2) Quebre os dois ovos separadamente, um a um, e bata usando um garfo, num recipiente à parte. Junte à tigela, misture.

3) Some a farinha, mas não toda (guarde uns 50 g) e o sal, mexa bem, para que os líquidos sejam absorvidos. Deixe descansar por 20 minutos.

4) Paralelamente, numa outra tigela, misture o açúcar à essência de baunilha, para aromatizá-lo. Adicione a manteiga, que deve estar em ponto de pasta, e agregue tudo muito bem, usando uma espátula.

5) Incorpore a manteiga com açúcar aromatizado à massa, sempre misturando, primeiro com colher (ou espátula), depois usando as mãos para sovar. À medida que for apertando e esticando a massa, vá introduzindo o restante da farinha, para ser incorporada aos poucos e facilitar a manipulação.

6) Trabalhe a massa com delicadeza, por dez minutos. Forme uma bola e deixe crescer por 2 horas.

7) Enquanto espera, prepare os demais ingredientes, que serão incorporados depois: raspe a casca um limão siciliano, a casca de uma laranja, separe as frutas cristalizadas e as passas.

8) Depois que a massa tiver crescido, despeje-a numa bancada. Aperte-a, achate-a, com delicadeza. Comece a agregar as raspas, as passas e as frutas cristalizas. Distribua tudo muito bem.

9) Divida a massa em duas porções iguais, para ter dois panetones. Modele uma bola com cada uma das partes, e coloque para descansar dentro de uma fôrma de papel própria para panetone (as de 400 ou 500 g). Se não tiver a forminha, use, por exemplo, um tigela de cerâmica, tipo ramequim, untada com manteiga. Deixe descansar por 1 hora.

10) Aqueça o forno a 200 graus, por 30 minutos (portanto, você vai ligar o fogo 30 minutos depois de ter começado a segunda fermentação).

11) Por fim, com uma faca afiada, estilete ou bisturi etc faça uma pequena cruz, pequena e superficial, sobre os panetones. Coloque um pedacinho de manteiga sobre cada panetone. Ponha as duas fôrmas sobre uma assadeira e leve ao forno por 30 a 35 minutos (se quiser assar uma receita inteira, sem dividir, o tempo sobe para 40 a 45).

12) Se achar que os panetones estão ficando escuros antes da hora, tire do forno, coloque um papel alumínio por cima e volte ao forno.

13) Um bom recurso para que os panetones não achatem e conservem seu belo volume é pendurá-lo de cabeça para baixo. Assim: espete duas varinhas de madeira (espetinhos para churrasco, por exemplo) na base do panetone; certifique-se de que ele está firme; e pendure, usando como apoio cadeiras, livros, prateleiras... o que você conseguir improvisar. Deixe ali, até esfriar.

* Se você gostou desta receita, tente o panetone com fermentação natural. A receita está no livro Pão Nosso. E a fórmula do fermento natural já foi publicada aqui, no site do EL PAÍS.

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