Fazer o próprio pão: coisa de hipster?
Fazer pão, cerveja, queijo, pode parecer coisa de alternativos, mas vale para todos que querem comer bem. E não é modismo
Costumo provocar dois tipos de decepção em quem, me conhecendo apenas “de texto”, me encontra em carne e osso pela primeira vez. O primeiro: sou menos velho do que o imaginado (seria a expectativa um efeito do meu segundo nome, Américo, flagrantemente das antigas?). O segundo: sou também menos gordo do que o esperado, considerando os temas sobre os quais escrevo. Um terceiro ponto, entretanto, tem ganhado força. Para surpresa de muitos, não sou hippie nem natureba – uma associação recorrente a quem se dedica à fermentação natural e seus pães produzidos sem pressa nem truques industriais.
É evidente que os dois primeiros casos aconteciam muito mais até alguns anos atrás, num mundo sem tanta influência dos smartphones, do Google Images, do Youtube e outras coisas mais. O meu rosto, o seu, estão por aí, na rede. Já a presunção de “alternatividade” segue mais frequente. A maioria ainda enxerga um viés contracultural no ato de cultivar leveduras e amassar filões caseiros. O que me fez, por outro lado, pensar a respeito. Seríamos todos nós – os partidários do “feito em casa” – de fato meio hippies? Ou, mudando do enfoque “comunidade flower power” para um espírito contemporâneo, “anti-massificação”, seríamos todos meio hipsters?
Imagino que você se identifique com alguma das ações a seguir, ou conheça quem as pratique. “Capturar e adestrar” bactérias e fungos selvagens, transformando-os em pães rústicos e delicadamente azedos, que serão besuntados com geleias e manteigas caseiras; elaborar a própria cerveja, de preferência na garagem (ocupada por bicicletas, não por carros); moer café, de grãos muito bem escolhidos, no exato momento de fazer a bebida, geralmente por métodos que não o óbvio espresso; dedicar-se ao picles, com legumes da horta, assim como ao keffir, ao iogurte; empreender os primeiros passos na direção dos queijos e embutidos homemade.
Tudo coisa de pessoas fora do padrão? Vejamos. O mundo dos artesanais costuma ser descrito como gêmeo-siamês de um estilo de vida mais despojado (embora nossos avós já fizessem a maior parte dessas coisas, como rotina diária). E parece automaticamente conectado a tribos urbanas adoradoras de armações de óculos do século passado, roupas costuradas em casa, barbas longas e, em suas expressões mais radicais, até à retomada das máquinas de escrever (juro que tamborilei estes caracteres num computador, utilizando um nada glamuroso Word). Tem seu fundamento – ninguém desprovido de inquietações, nem plenamente satisfeito com a alimentação industrial envereda pela pesquisa e pela prática da manufatura. Mas é um ponto de vista muito limitante.
Podemos pensar que ideias e comportamentos vêm e vão com o tempo, descrevendo movimentos pendulares. Ora mais caretice, ora mais liberdade; mais à direita, mais à esquerda; mais pró-establishment, mais anti-establishment. E que o interesse pelo artesanal, vá lá, teria aflorado num desses balanços do pêndulo.
Faz sentido. Nos últimos anos, temos refinado preferências, investigado matérias-primas, buscado a depuração de um gosto mais singular naquilo que consumimos e cozinhamos. Passamos a nos preocupar com a qualidade da comida, por um lado; e a ter mais atenção com o quanto gastamos com ela, por outro. Sociologias de mesa de cozinha à parte, não podemos nos esquecer de que nossa geração, mais do que qualquer outra, tem à disposição uma infinidade de boas matérias-primas, acessórios, receitas, conhecimento. E que elaborar quitutes e bebidas com as próprias mãos é um dos hobbies mais fascinantes que existem.
Muito do que praticamos hoje, no âmbito dos orgânicos e mesmo no manejo dos fermentados, tem a ver com costumes e sabedorias que chegaram à sociedade via contracultura – depois de quase terem se perdido nas tradições de muitas famílias (lembremos que, até meados do século XIX, pelo menos, todo alimento era cultivado sem agrotóxicos, e todo pão fermentado era feito pelo método natural). Se não fossem, digamos, os hippies californianos (e os padeiros mais ortodoxos franceses) e seu contraponto às urgências da economia industrial e pós-industrial, talvez não estivéssemos hoje comendo pain au levain. Mas, se é para pensar nos movimentos que influenciaram essa nova ordem alimentar, gosto de imaginar que os punks e seu “do it yourself” foram igualmente determinantes.
Aprecio a valorização do autodidatismo; de considerar que o direito a uma expressão pessoal é mais importante do que só reproduzir os padrões; que é possível concretizar ideias sem ter de esperar o endosso institucional. A lógica do do it yourself é clara. Realize as coisas com os recursos à mão, faça do seu jeito, seja livre. Assim, poucas décadas atrás, surgiram as produções culturais alternativas, as gravadoras e editoras independentes, os canais de comunicação para quem antes não tinha voz. Só que, hoje, em vez de garotos munidos de guitarras e amplificadores baratos e montando bandas, vemos cozinheiros amadores (no melhor sentido) e curiosos carregando para lá e para cá seus kits para fazer cervejas e queijos.
Essa turma heterogênea de aficionados costuma ter orgulho do que produz. Ela exibe suas criaturas no Instagram como quem mostra um troféu. Sou constantemente conclamado a provar das mais variadas coisas, sempre feitas em casa. Fico sempre lisonjeado, porque sei o que isso significa. Os artesãos se consideram mais cool do que a média; e mais conscientes sobre consumo e sustentabilidade, já que utilizam o que está por perto, o que está sobrando, e evitam desperdício. Pão velho vira farinha de rosca, vira pudim, vira rabanada... Nunca se perde.
Comecei a me lambuzar de fermentos e farinhas por gosto e curiosidade pessoais, dentro de toda uma gama de interesses na gastronomia, há mais de 20 anos. Vi que, de fato, a fermentação natural tocava em mim algo que ia além da execução mecânica de uma receita. O processo, cauteloso, meio mágico, combinava com meu pendor por assados de preparação lenta, por ragus demorados, por terrines feitas hoje para abrir daqui a uma semana...
Quando dou aulas de panificação, costumo brincar com os participantes, especialmente naquele momento em que faço circular, de mão em mão, um pote contendo o meu fermento: quem nos vê de fora, o que deve imaginar da cena? Uma turma cheirando e reverenciando um pedação de massa feioso e cheio de bolhinhas de gás... O que seria, uma nova religião? Um delírio coletivo? A seu modo, quase todo mundo acalenta alguma excentricidade. Afinal, se tem gente que põe uma camisa de clube de futebol e vai para o estádio gritar, se outros se vestem de Darth Vader para encontrar os amigos, por que não venerar colônias de seres microscópicos e perseguir, fornada a fornada, pães imperfeitamente perfeitos?
Acho que os anos vão se encarregar de provar algumas coisas, a saber. Que gostar de cascas crocantes e miolos perfumados, de compotas que ressaltem a essência das frutas, de embutidos que valorizem a qualidade da carne, não dependem de facções existenciais ou de estéticas. É algo que simplesmente pode atrair a todos que desejam comer bem. E que elaborar seus próprios alimentos, fermentados ou não, passa longe de ser efêmero (eis outra pergunta recorrente: artesanal é modinha?). Vamos deixar claro: definitivamente, bons pães, café, compotas e grande elenco não são paleta mexicana nem pipoca gourmet.
Pão integral de fermentação natural
Ingredientes
400 g de farinha de trigo branca
200 g de farinha de trigo integral
400 ml de água
200 g de fermento natural (levain) refrescado
12 g de sal
Modo de preparo
1. Numa tigela grande, vamos misturar todos os ingredientes, menos o sal. Primeiro, coloque o fermento natural (recém-alimentado e crescido) e a água, aproveitando para amolecer e dissolver um pouco o fermento, mexendo com uma colher. Aí, vá juntando a farinha aos poucos.
2. Com a farinha agregada, deixe descansar por 20 a 30 minutos. É a chamada autólise.
3. Quando começar a trabalhar a massa, acrescente o sal gradualmente, em pitadas bem espalhadas, até o fim. Use a espátula para mexer bem e raspar o que estiver grudado na borda da tigela.
4. Comece a sovar com as mãos. A massa vai grudar um pouco no começo. Resista à tentação de acrescentar mais farinha. Sove por por 10 minutos, na tigela ou numa bancada levemente enfarinhada, até a massa ficar homogênea, elástica e apenas levemente grudenta.
5. Cubra com um pano e deixe ali, na tigela, dentro do forno apagado, ou num armário. Longe do sol e do vento. Se estiver mais para calor, deixe crescer por 3 a 4 horas. No frio vai demorar uma hora ou duas a mais. Mas não exagere no tempo.
6. Depois das horas de descanso, coloque a massa numa bancada, com um pouco de farinha para não grudar. Estique, abra a massa delicadamente, aperte para redistribuir as bolhas de gás. Dobre a massa como um envelope, feche a emenda. Vire a emenda para baixo e dê ao pão um formato alongado e oval.
7. Pegue uma assadeira antiaderente, ou com tela de silicone, ou coberta por uma camada de farinha, para não grudar. Acomode a massa modelada sobre ela, cubra com um pano. Vai descansar mais uma hora
8. Ligue o forno, temperatura alta, a 220 graus ou mais. Pré-aqueça por meia hora. Se quiser, na parte mais baixa do forno, coloque outra assadeira, para colocar gelo na hora de assar. Ao final desses 30 minutos, é hora de colocar o pão no forno.
9. Com uma faca afiada, ou de serra, ou estilete, faça um corte no pão, imediatamente antes de colocar a assadeira no forno. Borrife um pouco de água sobre o pão, ou coloque uns cubos de gelo sobre a assadeira que está na parte de baixo. Asse por 45 minutos. (Ou asse dentro de uma panela de ferro, pré-aquecida; metade dos 45 com tampa, metade sem tampa, para corar).
10. Tire o pão e coloque sobre uma grelha ou coisa do tipo, para que ele esfrie por cima e por baixo. Espere ficar pelo menos morno, antes de cortar.
* Receita inspirada no livro 'Pão Nosso', de Luiz Américo Camargo.
Fermento natural
1. Faça um suco de abacaxi, apenas com a fruta, e reserve 60 ml, coados. Separe 50 g de farinha de trigo integral. Misture bem os dois, numa tigela tipo ramequin (que deve ser coberta com um pano) ou num pote de vidro com tampa. Guarde num lugar protegido da luz e do calor. Espere 48 horas (um pouco mais, ou até um pouco menos), até que apareçam as primeiras bolhas. Durante esse período, abra e mexa com colher, duas vezes por dia.
2. Dois dias depois, percebendo que há atividade (bolhas pequenas, e mudança de textura), alimente de novo, desta vez com 20 ml de suco de abacaxi e 30 g de farinha integral. Mexa bem e guarde por mais 48 horas, mexendo uma ou duas vezes por dia.
3. Temos mais bolhas? Então, vamos reforçar a dose de farinha integral, 50 g. E, desta vez, água, filtrada ou mineral, 30 ml. Agregue bem e guarde de novo. O descanso, agora, é de 24h.
4. Se a mistura estiver “ativa”, com textura aerada, alimente com mais 75 g de farinha integral e 30 ml de água. Feche o recipiente e aguarde mais 24h.
5. Com a mistura mais crescida e esponjosa, agora a ideia é descartar parte do quase-fermento: reserve 100 g, doe ou jogue fora o restante. Mude para um pote com tampa, misture os 100g remanescentes com 200 ml de água e 300 g de farinha integral. Espere crescer, entre 4 e 8 horas.
6. Repita a operação: aproveite 100 g, descarte ou doe o resto, alimente de novo com 200 ml de água e 300 de farinha integral. Depois que tiver crescido, leve para a geladeira, para estabilizar. Se a ideia não for usá-lo todo dia, ele deve ser guardado em geladeira, em pote com tampa, para não apodrecer. A alimentação, daqui em diante, será sempre na proporção 1, 2, 3. Por exemplo: se temos 50 g de fermento, somamos ao dobro de água, 100 ml, e ao triplo de farinha integral, 150 g. Não importa a quantidade inicial, basta respeitar as quantidades proporcionais.
7. No dia seguinte, o fermento já pode render pães. Ele deve ser refrescado (isto é, alimentado, com o devido tempo para crescer, de 4 a 8 horas) toda vez que for usado na massa de pão. Lembre-se: parte do fermento vai para a receita; e parte é guardada, para dar origem a novas fornadas. Sendo bem tratado, ele dura indefinidamente.
* Receita inspirada no livro 'Pão Nosso', de Luiz Américo Camargo.
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