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Gastronomia
Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

O melhor da temporada é a pitanga

Nas ruas de São Paulo há árvores generosas com a frutinha vermelha Comê-las direto do pé é uma aventura ao alcance de todos

Pitangas recolhidas nas ruas, em São Paulo.
Pitangas recolhidas nas ruas, em São Paulo.L. A. C. (Arquivo pessoal)
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Resolvi dedicar a coluna ao tema mais saboroso e estimulante desta época do ano: a pitanga. A frutinha vermelha, da família das mirtáceas (como a uvaia, e mais remotamente, a jabuticaba), está em seu auge no início de primavera. E ela é mais do que um ingrediente, é um programa: comer pitangas no pé, na rua mesmo, ou, para quem estiver fora do perímetro urbano, no mato, no sítio.

Até uma ou duas semanas atrás, eram as amoreiras de São Paulo que estavam carregadas, e a safra foi das mais fartas. Não lembro de ter chegado em casa um único dia sem mãos, dentes e até roupas manchados, depois de ter saído para caminhadas e corridas matutinas. Não é fascinante que, no meio da metrópole, ainda possamos nos lambuzar de frutas silvestres?

Pitangas são comuns no bioma da Mata Atlântica. E suas árvores (o nome científico é Eugenia uniflora) têm notável poder de adaptação. O que significa capacidade de crescer e frutificar em praças, calçadas e até mesmo canteiros domésticos. Tão divertido quanto devorá-las é treinar o olhar para localizar as plantas, com suas folhas pequeninas e perfumadas, ou, mais fácil ainda, para identificar ao longe os pontinhos vermelhos espalhados pelo chão (sim, as mais perfeitamente maduras caem e, normalmente, se perdem).

Minha área de colheita concentra-se na zona oeste de São Paulo, entre o Alto da Lapa e o Alto de Pinheiros. Andando, é sempre mais fácil. O que não impede, no entanto, que eu pare o carro ao avistar algum pé – desde que haja tempo e lugar para estacionar. Certas vezes, questiono a minha própria sanidade: eu deveria estar fazendo isso? Mas, na maior parte das ocasiões, penso que temos mais é que aproveitar aquilo que as temporadas nos concedem. Não temos trufas, o que é uma pena; mas temos pitangas.

Sei onde estão as árvores, nos bairros que exploro com mais frequência. Mais ainda, sei onde estão os melhores pés. E, por inusitado que pareça, é incrível como as frutas variam, de um lugar para o outro. Mais doces ou ácidas, mais carnudas ou menos, caroços menores ou maiores... Uma diversidade que eu não ousaria atribuir a terroirs diversos, mas a condições locais específicas (quantidade de água, principalmente; presença de compostos orgânicos; índices de potássio na terra etc).

As propriedades benéficas, citadas pelos nutricionistas, incluem riqueza de vitaminas, sais minerais e antioxidantes. Tanto melhor. Porém, o que mais me atrai é a capacidade de uma fruta tão minúscula abrigar o doce, o azedo, o amargo – todos unidos e, no entanto, revelando-se em momentos diferentes, em camadas que chegam pouco a pouco às papilas. Se temos a felicidade (e a perspicácia) de pinçar as mais profundamente vermelhas, a experiência é ainda mais completa.

Uma fruta madura, para redundar no conceito, é aquela que atingiu a maturidade física, como explica o crítico Jeffrey Steingarten em O Homem que Comeu de Tudo. Ela ganha cor, suculência, tamanho, aroma, fica menos adstringente. Uma sinfonia de hormônios internos e enzimas atua para torná-la cobiçável e sedutora (para muitos seres vivos, inclusive nós, humanos), o que aumenta a probabilidade de que suas sementes sejam transportadas para outros lugares, espalhadas e semeadas, garantindo a sobrevivência da espécie. A maturação perfeita, todavia, provoca também a separação natural do fruto de sua árvore. E as mais viçosas, cheirosas e docinhas, então, simplesmente desabam no chão. Capturar um exemplar no ponto, quase no instante de “cair de maduro”, é uma sorte e tanto.

As melhores pitangas, como é de se supor, ou foram direto ao chão, ou foram coletadas na faixa de altura da média na população, onde os braços alcançam. Nessas horas, lamento não ter 1,90 m ou mais. É frustrante perceber que vários exemplares perfeitos para consumo estão lá em cima, e que só um jogador de vôlei, num salto, conseguiria alcançá-los. Perambulando pela minha região, por outro lado, tenho visto algumas soluções bem interessantes para não desperdiçar essas pequenas maravilhas que a estação nos traz. Uma, é a famosa lona presa em volta do tronco, quase na copa, para que as frutinhas não se espatifem na calçada. Outra, é ainda mais criativa. Trata-se de uma garrafa pet, cortada ao meio, com o gargalo colado a um cabo de vassoura. O operador da engenhoca faz assim: cutuca pitangas e amoras lá no alto; as bem maduras se desprendem mais facilmente e caem dentro do recipiente improvisado.

Na série Chef’s Table, do Netflix, o episódio sobre Alain Passard mostra a relação de grande intimidade do cozinheiro francês com a agricultura – ele cultiva seus próprios vegetais. Numa das muitas belas passagens do documentário, diante de um pessegueiro, ele se agacha e colhe os frutos caídos sobre a relva, em torno da árvore. E morde um pêssego, suculento, tenro – sim, as frutas recém-caídas são insuperáveis em sabor.

É evidente que recolher e ingerir o que está no chão de uma cidade grande é algo mais arriscado do que na zona rural, por possibilidades variadas de contaminação. O ideal é lavar as frutas, mesmo as coletadas diretamente do pé. Mesmo que elas não contenham agrotóxicos, podem ter sido expostas a sujeiras diversas. Vou além: tendo a maioria de nós nascido num Brasil urbano, sair por aí devorando vegetais variados, e in loco, soa quase uma aventura. Mas exige algum conhecimento.

Se há alguém que domina os caminhos do forrageio (a coleta quase selvagem de frutas, folhas etc), é a nutricionista Neide Rigo. Autora do blog Come-se, ela é uma das maiores pesquisadoras dos ingredientes brasileiros, particularmente das chamadas PANCs (plantas alimentícias não convencionais). Periodicamente, ela organiza e guia grupos pelo bairro da City Lapa, em busca de frutas, ervas, folhagens, na expedição PANC na City. O programa é, antes de tudo, pedagógico. Mostra como conhecer espécies e, principalmente, como prepará-las da melhor forma.

Voltando à frugal obsessão pelas pitangas, digamos ainda que é necessário haver uma certa etiqueta – ou melhor, uma ética – na coleta. Eu, por exemplo, me sinto mal em arrancar as pitangas ainda verdes. Não apenas porque estarão azedas demais e irão amarrar na boca. Mas porque não é justo, elas ainda não atingiram o ápice. É como desarrolhar um Barolo ainda jovem, sem permitir ao vinho o aporte de sabores e aromas que ele só revelaria depois de quinze ou vinte anos de guarda.

Também não é permitido danificar as árvores, nem criar situações de perigo para os passantes. E não é bonito pegar frutas em árvores alheias. Este último ponto, aliás, aprendi um tanto na marra, levando uma bronca da minha filha, há uns poucos anos. Estávamos voltando da escola quando, diante de um belo e carregado galho, comecei a saltar e a recolher algumas amoras. Ela protestou e, naquele momento, não pesava apenas a vergonha de ver um adulto (para piorar: seu pai!) pulando de forma descoordenada. “Pai, é só o galho que está na rua. A árvore está dentro da casa, é do cara que mora aí, você não pode pegar”, ela disse. “Mas as amoras estão caindo na calçada, vão acabar indo para o lixo”, respondi. “Não interessa, as amoras são do cara!.” Não tive como evoluir nos argumentos e acatei. E, desde então, evito (notem a sutileza do verbo) me servir de frutinhos gerados em árvores com raízes em propriedade privada.

Frutas como a pitanga e a amora têm vida breve – coerentemente com sua aparição sazonal e quase meteórica. Oxidam com facilidade. Quando recolho para levar para a casa (só um pouquinho, para minha mulher experimentar), consumimos no mesmo dia. Por outro lado, para honrar a abundância da época, sempre é possível transformá-las em ingrediente culinário e, assim, aproveitá-las melhor. Afinal, lembremos que goiabadas e afins surgiram desse jeito: na impossibilidade de comer todas as goiabas disponíveis, na dificuldade de estocá-las, o jeito foi criar receitas e técnicas para a preservação.

O chef Rodrigo Oliveira, do Mocotó, por exemplo, usa a pitanga na produção de sorbets e em geleias. Sugere, em especial, a associação da frutinha com o maracujá. E nos propõe a receita a seguir, uma caipirinha, elaborada por seu xará Rodrigo Ferreira, que comanda o bar do restaurante. Comamos e bebamos em louvor a uma das iguarias das temporadas.

Luiz Américo Camargo é comentarista e consultor gastronômico, especializado em eventos e produção de conteúdo. Foi um dos fundadores do Paladar, marca de gastronomia de O Estado de S. Paulo. É também colunista do jornal Zero Hora.

Caipirinha de Pitanga

Por Rodrigo Ferreira, chef de bar do Mocotó

Ingredientes

  • 12 a 15 pitangas maduras;
  • 2 colheres de sobremesa de açúcar (o Mocotó prepara com açúcar aromatizado com especiarias, tais como aniz-estrelado, cravo, zimbro, cardamomo, umburana e fava de baunilha; fica melhor ainda);
  • 60 ml de boa cachaça (branquinha, para dar mais frescor; não precisa ser cachaça envelhecida);
  • Gelo em cubos.

Modo de preparar

Macere as pitangas e o açúcar dentro de um copo grande, próprio para caipirinha. Complete o copo com gelo. Adicione a cachaça, mexa bem. Está pronta.

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