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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Explicar o fracasso

A batalha democrática na Colômbia é disputada entre uma classe política velha e cansada contra outra classe política menos sensata, mais corrupta que a tradicional, mas carregada de slogans e mentiras populistas

ENRIQUE FLORES

É muito fácil ser sábio no dia seguinte. Quando ocorre o que ninguém esperava – nem mesmo os especialistas –, estes saem (saímos) tentando explicar, sérios como apostadores e sem vergonha alguma de não ter previsto aquilo antes. Em um mundo globalizado, o que antes se chamava, em pomposas palavras hegelianas, “o espírito da história” hoje leva um nome muito mais comum: trending topic, e ainda é acompanhado por um # para indicar a hashtag. O trending topic que ganhou no plebiscito colombiano é bem curioso. Um “sim, mas não”: #SiALaPazPeroEstaNo. Yes but not. O contraditório coração humano entende esses absurdos da lógica formal.

Há sábios que agora dizem, por exemplo, que o voto colombiano a favor do “não” ao acordo de paz se deve à falta de educação e à ignorância de um povo que é manipulado pela mentira dos inimigos da paz. Ou que pouca gente votou pelo furacão. Há nisso algo de verdade. Mas como o mesmo ocorreu na culta Grã-Bretanha com o Brexit, na Alemanha com o castigo a Angela Merkel por dizer coisas sensatas sobre os refugiados, nos países da Primavera Árabe com o voto majoritário a favor dos fanáticos religiosos ou nos Estados Unidos às vésperas da eleição de Donald Trump, fico com a impressão de que a “ignorância” dos colombianos não é uma boa explicação.

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Na realidade, parecemos um povo muito adaptado ao mundo contemporâneo, globalizado e no mesmo trending topic da Terra: a insensatez democrática. Se o nosso problema é a ignorância, ela faz parte da mesma ignorância global, do primeiro mundo que destrói a ideia de uma Europa unida e em paz, do segundo mundo que elege mais de uma vez o mafioso Putin, e do terceiro mundo do extremo oriente e do extremo ocidente. A América Latina, não se esqueçam, é o extremo ocidente, com uma alma tão misteriosa e incompreensível como a do extremo oriente. Tão misteriosa como a suposta cultura do centro: a europeia ocidental que hoje persegue o suicídio como solução.

Na Colômbia, assim como no mundo inteiro, a batalha democrática é disputada entre uma classe política velha e cansada (bastante sensata, corrupta como sempre e desprestigiada por décadas de críticas ferozes vindas de nós, os “intelectuais”) contra outra classe política menos sensata, mais corrupta que a tradicional, mas carregada de slogans e de mentiras populistas. O populismo, a demagogia vulgar, triunfou no mundo inteiro. Berlusconi foi o prólogo, porque os italianos são os magos dos trending topics e inventam tudo antes. Depois vieram Chávez, Putin, Uribe, Ortega. Virão ainda Trump e Le Pen? Talvez. Todos são demagogos perfeitos, cleptocratas que denunciam a velha cleptocracia.

Para o ‘não’ ganhar, Álvaro Uribe contou mentiras nas quais ele mesmo não acredita

O povo prefere votar neles com a ideia de mudar. Um salto no escuro? Sim. É preferível um salto no escuro do que a chatice da sensatez. A sensatez não dá votos: produz bocejos. E o que os eleitores mais temem é entediar-se. Um povo incapaz de se entediar com boa música, com livros, com cultura, é um povo disposto a votar a favor de qualquer disparate com o objetivo de se divertir um pouco; com o objetivo de ver derrotados, pálidos e abatidos os políticos que, por estarem há anos na televisão e no poder, são os mais detestados. Melhor trocá-los por outros, ainda que sejam loucos. É uma espécie de embriaguez, de viagem por drogas, de dança dionisíaca.

E assim somos obrigados a assistir ao trending topic da insensatez mundial. Para colocar nela uma hashtag apropriada, proponho algumas: #QueGanheODemagogo #TudoMenosPolítica #AFavorDeQuemÉContra. Enfim, alguma coisa assim. O espírito da história. Os países que já começaram a ensaiá-lo começam a sair dele, com uma ressaca horrenda. A Venezuela já não quer continuar o experimento chavista, e cedo ou tarde sairá da loucura que a consumiu econômica e moralmente. Já a Itália viveu a penitência de 15 anos de Berlusconi, e talvez não queira voltar a algo parecido com Beppe Grillo. A ressaca do Brexit chegou à Grã-Bretanha já no dia seguinte, mas o país já não sabe como evitar o pesadelo escolhido pela maioria.

Que faremos na Colômbia? Estamos como devem ficar os Estados Unidos no dia seguinte ao triunfo de Trump: atônitos, desconsolados e sem saber o que vai acontecer. Mas quem sabe as coisas não sejam mais simples. Não tão hegelianas (o pomposo “espírito da história”), senão bem mais nietzscheanas: humanas, demasiadamente humanas. Tudo continua sendo uma fogueira de vaidades. Se Álvaro Uribe estivera no Governo, teria assinado a mesma paz com as FARC, ainda que talvez sem nada por escrito e com uma dose muito, mas muito baixa de verdade. O que menos interessa a Uribe é a verdade, pois na verdade poderiam sair muito prejudicados ele e seus amigos mais íntimos. Mas no fundo o acordo seria parecido. Para o “não” ganhar, ele contou mentiras nas quais ele mesmo não acredita: que o comunismo tomaria o poder, que dali viria o lobo do castrochavismo, que era contra a impunidade dos terroristas. Sabemos que não é nada disso. Santos e Uribe querem o mesmo: ser cada um o protagonista do acordo, e não que o protagonista seja seu adversário político. É uma questão humana, demasiadamente humana, de pura vaidade. A paz, sim. Mas eu é quem assino.

Estamos como devem ficar os EUA no dia seguinte ao triunfo de Trump nas eleições presidenciais

Mudar o acordo de paz, que é o que o povo decidiu ao votar majoritariamente pelo “não”, é algo possível juridicamente, mas muito difícil politicamente. O presidente Santos teria que dar a Uribe um ou dois lugares na mesa de negociações em Havana. Os delegados de Uribe teriam que obter algo das FARC (digamos dois anos de prisão), e tudo isso em troca daquilo que tanto Uribe quanto as FARC querem: uma assembleia constituinte. Com uma nova Constituição concebida em acordo com as FARC, Uribe poderia novamente aspirar a ser presidente (o que é proibido pela atual Constituição), e as FARC poderiam ser um novo grande partido da esquerda populista (estilo Ortega e Chávez). Assim, todos estariam contentes. Mas, obviamente, Santos não deve querer que Uribe tire dele o protagonismo. Portanto, não sabemos de nada e viveremos em um pântano confuso até que haja eleições e tenhamos um novo presidente.

Em 2 de outubro acabou o período de Santos, o presidente que fez o esforço mais sério pela paz e conseguiu firmá-la, apenas para vê-la ruir oito dias depois. Governará por lei e por inércia até 7 de agosto de 2018. E o processo de paz continuará em um limbo de incerteza jurídica e real. Mas isso não importa. A Colômbia é o país em que tudo é provisório, tudo é pelo momento, enquanto isso. Um país hiperativo e superexcitado, especialista em drogas estimulantes: cafeína, cocaína, nicotina, álcool.

As pesquisas não fracassaram ao prever a vitória do “sim”. O que houve é que as pessoas responderam com mentiras, tinham vergonha de votar pelo “não”, mas votaram. Assim como lhes dá vergonha dizer que votarão em Trump, mas votarão. Nós que votamos pelo “sim” sonhávamos com uma “paz estável e duradoura”. A maioria, o “não”, votou por uma incerteza estável e duradoura. Ao fim e ao cabo, esse é o verdadeiro trending topic da Colômbia, hoje e sempre: #UmaIncertezaEstávelEDuradoura. Assim como estará o mundo inteiro quando amanhecer o dia 9 de novembro de 2016 e Trump tenha ganhado. Eu já sei o que estaremos sentindo: medo, tristeza e desespero.

Héctor Abad Faciolince é escritor.

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