A pira que aprendeu a rebolar
O revezamento da tocha olímpica foi marcado por amor e ódio. Depois de 2016, ela não será a mesma
Do alto de seu posto de uma das vozes mais inventivas da música brasileira, Jorge Mautner vaticinou em um refrão genial-tropicalista-psicodélico, em 2002: “Ou o mundo se brasilifica, ou vira nazista”. Passados mais de dez anos, a tocha olímpica, em tour pela terra brasilis, parece ter levado ao pé da letra o urgir do poeta. Nascida no nefando ano de 1936, sob a batuta da Olimpíada da Alemanha nazista – como bem lembrou a escritora Lilia Schwarcz – a pira itinerante vem, desde então, e de quatro em quatro anos, dando banda por diferentes cantos do mundo. Como não dá para julgar ninguém pelo berço, é impossível afirmar que alguma vez na vida ela foi de estender bracinho e gritar Heil Hitler para o sinistro bigodudo; agora, o que dá pra afirmar, isso sim, é que hoje, no encerramento de sua grand voyage pelo Brasil, ela se brasilificou. Com tudo de bom e de ruim que possa vir junto do verbo mautneriano.
A verdade é que a visitante veio dar de arder suas chamas por aqui em momento de especial comoção para os brasileiros. E, por isso, fosse vontade dela ou não, a brasilificação veio goela abaixo. Nas ruas, foi feita de gato e sapato. Mas também teve seus momentos de glória olímpica. Foi Judas e Jesus. Amaldiçoada e louvada. Ao todo, conheceu 329 cidades de norte a sul, leste a oeste, percorreu cerca de 24.000 km e passou por mais de 12.000 mãos de subcelebridades, anônimos e famosos. Foi vítima de baldes d’água, jatos de extintores de incêndio e dedos tremulantes de emoção. Caiu, foi apagada e expulsa da cidade fluminense de Angra dos Reis, levantou e deu a volta por cima.
A vida não foi fácil para ela, mas como o cronista Antonio Prata bem lembrou em sua coluna, “essa tocha não é do PMDB, essa tocha é de Zeus! Do Cassius Clay! De Apolo! Do João do Pulo!”. Quando o escritor a teve nas mãos, sua emoção foi a mesma de outros milhares de brasileiros que puderam carregá-la. Por exemplo, em estado de glória, alteada por Juliana de Faria Kenski, fundadora da ONG Think Olga, que defende os direitos das mulheres, virou símbolo das vitórias da luta cotidiana das brasileiras. Afinal, Juliana entregou a chama peregrina para ninguém menos do que Maria da Penha, a mulher que empresta nome à lei homônima, que pune crimes domésticos e está completando dez anos esta semana.
Em seu percurso, também houve momentos de comoção nacional, como quando Mário, o lobo Zagallo, símbolo de um tempo em que a seleção brasileira era considerada uma confraria olímpica, desfilou em uma cadeira de rodas, aos 84 anos, distribuindo sinais de positivo como se dissesse simpaticamente “vocês vão ter que me engolir”. E, por falar em ídolos, como não se lembrar de Maria Esther Bueno? Aos 76, a maior tenista da história brasileira, vencedora de 19 títulos de Grand Slam, carregou a tocha ambulante pela Avenida Paulista, tal qual empunhava sua raquete. Ou, então, Vanderlei Cordeiro da Lima, que em 2004 fez centenas de torcedores chorarem quando a seis quilômetros da chegada da maratona foi derrubado por um manifestante religioso, perdeu o ouro, mas subiu ao pódio com um bronze, orgulhosa e sofridamente exibido. Coube a ele a nobre tarefa de acender a pira olímpica.
Agora, uma das coisas que a tocha, mais acostumada à calmaria do hemisfério norte, logo aprendeu por aqui foi a triste capacidade nacional de demolir seus símbolos antigos para colocar novos no lugar. Como consequência de sua passagem por Manaus, deixou estirada no chão a onça Juma. Fera emblemática do Brasil, que nada entende de Olimpíadas, foi levada para exibição na passagem da pira e, depois de avançar em um soldado, acabou morta a tiros. Se tivesse consciência, talvez o fogo olímpico pensasse que o acontecimento resume bem o drama recorrente de um país em que o passado é apagado constantemente para que se erga um novo presente mais brilhante – que nunca chega. Contudo, como prova de que sua viagem não deixou apenas terra arrasada, como evidência de que também sabemos valorizar nossos símbolos (por mais singelos que sejam), nas ruas de Copacabana – a princesinha da praia, dos botequins fecha-nunca da capital carioca – ela foi conduzida por ninguém menos que Agnaldo, o churrasqueiro e garçom do Galeto Sat's, um dos bares mais tradicionais do bairro.
Impossível que nos próximos dias ela não se pegue nostálgica lembrando dos momentos em que foi alvo de humor 100% tupiniquim. O maitre do pé sujo carioca, por exemplo, acabou virando seu condutor de última hora, depois que os frequentadores do bar organizaram um revezamento de uma simbólica tocha etílica que passou por 12 botequins de Copa, acabando nas mãos do Agnaldo, que acendeu sua churrasqueira com o fogo da pira alcoólica. Ilustres da noite, como o cronista do EL PAÍS, Xico Sá, participaram do chiste, que chamou a atenção do gélido Comitê Olímpico do Brasil (COB), que, por sua vez, resolveu incluir o garçom na lista de condutores oficiais. E como esquecer a vez em que moradores de Cuiabá resolveram fazer sua própria tocha usando uma vassoura em chamas seguida por um cortejo de bicicletas e motos?
E convenhamos, por aqui, ela desembarcou em um momento de especial comoção. Chegou em meio a um impeachment e, assim, virou alvo imediato de quem acredita no vício do processo. Apagar a pira olímpica acabou se transformando em um símbolo de indignação tão forte quanto portá-la orgulhosamente – como fizeram inúmeros atletas e ex-atletas. E teve momento em que ela foi até preterida por seu condutor, que preferiu sambar de bunda lelê com as palavras “Fora Temer” estampadas nas nádegas. Só que não foram apenas os indignados com o Governo interino, mas também os que se indignariam em qualquer circunstância com os gastos homéricos despendidos para se erguer uma cidade olímpica dentro de uma cidade incapaz de varrer sua própria sujeira das águas inocentes da baia mais bela do mundo.
Depois de toda a peregrinação, há muito para o foguinho digerir. Por exemplo, como entender que fazem parte de uma mesma realidade as águas claras de Ipanema e, em um dos momentos mais tristes do revezamento, os tiros, porradas e bombas de Duque de Caxias? Na cidade fluminense, longe do Rio maravilha, a passagem da tocha foi forçada pela Polícia Militar que, como de costume, não poupou bala de borracha e spray de pimenta para dispersar uma população que queria protestar, mas que também queria curtir o momento. Nos registros do acontecido, tem mãe protegendo filho, criança chorando de pavor e olho escorrendo lágrima de gás.
Depois de tantos percalços, ela merecia viver momentos de glória. Entrou no Maracanã pelas mãos de Guga, depois que o país já estava enfeitiçado pelo espetáculo da abertura. Foi entregue à eterna estrela do basquete Hortência, até chegar às mãos de Vandelei que promoveu o ápice da sua passagem pelo Brasil.
Daqui a quatro anos, viajando pelo cartesiano Japão, onde acontecerão os próximos jogos, a pergunta que fica é se a amada e odiada tocha olímpica será a mesma. Terá ela esquecido o que viveu aqui? É verdade, como bem apontou a agência Lupa, a chama não viu todo o Brasil. De acordo com dados levantados pela agência, as cidades que receberam a ilustre convidada não representam fielmente a média do desenvolvimento no país. Ela conheceu um país mais rico, mas, inegavelmente, encarou muitas das contradições atuais e históricas verde e amarelas. Teve que aprender a rebolar e também a se envergonhar. Brasilificou-se. Mas, como os brasileiros, talvez não saiba bem o que isso significa e nem se o verso de Jorge Mautner, que pregava a salvação do mundo, era engano ou mesmo vaticínio de poeta. Ave, Brasil!
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