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“As favelas têm culturas locais. Não posso fazer uma leitura moralizante”

Psicóloga explica: "Temos que ter cuidado para não criminalizar a pobreza e as favelas"

Baile funk na Rocinha.
Baile funk na Rocinha.Cris Isidoro/Diadorim Ideias (Prefeitura do Rio)
Felipe Betim

A psicóloga Cristina Fernandes, de 54 anos, é uma das principais autoridades do Rio de Janeiro quando o assunto é violência sexual contra crianças e adolescentes. Desde 2009 coordena as atividades do Centro Integrado de Atendimento à Mulher (CIAM) Márcia Lyra, o mais antigo centro da capital fluminense que atende mulheres vítimas de violência e presta auxílio psicológico e jurídico. Com mais de duas décadas de trabalho nas costas, já lidou com diversos casos complexos e inesperados. Já viu de tudo. Sobretudo quando transportada diretamente para o contexto de muitas meninas e adolescentes que vivem ou frequentam as favelas da cidade. Em uma entrevista ao EL PAÍS, faz questão de destacar reiteradas vezes: “As violências são democráticas, principalmente as sexuais, que são intimistas. Acontecem em todos os lugares. Então temos que ter cuidado para não criminalizar a pobreza e as favelas. E eu como profissional tenho que ter cuidado de que minha intervenção não tenha um cunho moralista”.

Ao longo dos anos, Fernandes foi descobrindo que existem determinadas dinâmicas que são próprias das favelas, o que podia entrar em choque com o que ela acreditava ser o correto. “Há violências que eu posso entender como violência, mas que não são para os indivíduos envolvidos”, explica. Como exemplo, conta sobre quando, há alguns anos, estava em uma favela muito violenta do Rio fazendo um trabalho com as alunas de uma escola. Em determinado momento, ao falar sobre paternidade, começou a ouvir “risadinhas” no auditório de 60 pessoas. “Sem perder o rebolado, porque são adolescentes, pergunto o que era. ‘Tia, aqui ninguém tem pai não. Aqui é tudo filho do cadinho”.

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Quando no final da aula foi perguntar como as meninas se sentiam, se deparou com os costumes daquela comunidade. “As meninas já iam para o baile funk sem calcinha porque elas transavam num trenzinho. Então, é um bocadinho de cada um. Mas elas não têm o entendimento que de é algo abusivo. Pelo contrário: ser mãe significa libertação da família e status dentro dessa comunidade. Não tem como saber quem é o pai, mas para elas tem um significado de pertencimento e de autonomia”.

Portanto, ela não pode tratar este tipo de situação da mesma forma que trata outros casos onde não há nenhum aspecto cultural ou geracional envolvido, segundo argumenta. “Não é uma questão sexual. É uma questão de identidade. O que para a minha cultura e para a minha geração pode ser uma violência, para o outro pode não ser. E se eu luto na área de direitos humanos pelos direitos sexuais de crianças e adolescentes, eu preciso entender quais são as novas dinâmicas”.

Como deve então agir um profissional nesses casos? Que tipo de suporte e orientação deve dar para os indivíduos envolvidos? Para Fernandes, é preciso evitar uma leitura moralizante; ao contrário, é necessário entender determinadas práticas, de onde elas vêm e se são localizadas ou pontuais. “As meninas estão fazendo competição de sexo. É estupro ou não é? O trenzinho é uma cultura do estupro ou uma prática cultural do local? Como profissional, preciso saber se elas têm conhecimentos, dados e informações sobre as possíveis consequências para a saúde e bem-estar físico e emocional delas. Preciso saber se aquela decisão é consciente. E se for, se a menina sente prazer em fazer competição de sexo ou de participar de trenzinho, me cabe respeitar. Mas se eu entendo que aquilo foi algo imposto, que é uma violação, então quem fez vai ter que responder por aquilo”.

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