Na crise, cenário gastronômico vive reorganização
Responsável por fechar muitos restaurantes, a crise também pode acabar por consagrar alguns
Gosto de pensar no cenário gastronômico de uma grande cidade como se fosse uma paisagem arquitetônica. Aprecio a ideia de poder olhar para a linha do horizonte e ver um pouco de tudo. E, assim, distinguir os estilos, reconhecer as marcas de diferentes épocas, identificar os registros da história. E contemplar a coexistência de construções que revelem o antigo, o novo, o popular, o luxuoso, o autóctone, o exótico. Num mundo ideal, a variedade de restaurantes, receitas e produtos seria extensa, e a comida, sempre muito boa.
Essa diversidade panorâmica não é só interessante para a saúde de uma cultura. Ela é importante para o lazer do público. Contudo, estamos no meio de uma recessão, e nem me estenderei sobre os seus efeitos – todo mundo está sentindo. Falar em fechamentos e cortes, é quase o óbvio. Por outro lado, definir o momento como sendo de oportunidade para crescer e se reinventar, é o clichê habitual (e verdadeiro). Meu ponto é outro. De fato, as crises aguçam o espírito da inovação. Mas elas talvez abram espaço, mesmo, é para o conservadorismo: na dúvida, a turma corre para o que parece mais seguro. É o que explica, em meio à onda pessimista, que uns tantos mantenham seus salões cheios.
Pensemos nas bolsas de valores. Em momentos de perigo, a maioria dos que lidam com ações foge do risco e recorre às chamadas blue chips, os papeis com mais credibilidade. Coisa parecida acontece em outras áreas. Diante do incerto, os consumidores não brincam com seu dinheirinho.
Tenho feito levantamentos informais e apurações pessoais, com clientes e proprietários. Procuro descobrir como e quanto as pessoas estão gastando com comida e bebida. Conheço muita gente que baixou radicalmente o número de almoços e jantares fora de casa. Coisa de 50%, pelo menos. Garrafa de vinho, só se custar até dois dígitos, ou não passar muito dos R$ 100; caso contrário, é uma taça e olhe lá. Se as visitas são menos constantes, precisam então ser bem escolhidas. E aonde as pessoas vão? Aos seus restaurantes de confiança, onde o programa não tem erro. As incursões aventureiras, para explorar as novidades da praça, ficam em segundo plano. E desde que não provoquem grandes despesas.
Quem tende a se dar melhor nesse contexto? Minhas percepções:
- Os estabelecimentos de perfil popular, que se preocupam mais com refeições rápidas e “utilitárias”. E que conseguem oferecer repastos por volta dos R$ 20, atraindo inclusive habituês de casas mais caras.
- Os nomes mais consagrados do mercado, com seus clientes cativos e sua capacidade de manter padrões. Esse nicho tem se alimentado, inclusive, do fato de boa parte da classe média brasileira estar fugindo das viagens internacionais – Nova York pode ficar para outro ano, mas um jantar classe A ainda dá para bancar. Lembremos ainda que, para turistas que ganham em dólar ou euro, o Brasil anda barato; e quem aparece em guias e listas, como o Michelin e o 50 Best, leva vantagem.
- E aquelas novas casas que apresentam conceitos despojados a preços amigáveis.
No meio de tudo isso, há um grupo enorme de endereços que, nem tão baratos, nem tão marcantes, nem tão famosos ou tradicionais, vai ter mais dificuldade para atravessar os tempos de miserê.
Pensemos nas bolsas de valores. Em momentos de perigo, a maioria dos que lidam com ações foge do risco e recorre às chamadas blue chips, os papeis com mais credibilidade. Coisa parecida acontece em outras áreas.
Muito tem se comentado sobre a multiplicação de bares/restaurantes com balcão (izakayas, casas de lâmen etc) e de hamburguerias. Não se trata de coincidência ou de uma mera busca pela simplicidade. Estabelecimentos desse tipo, antes de tudo, são modelos de negócio mais descomplicados. Requerem investimento menor, do lado do empreendedor, e possibilitam contas mais baratas, pelo ponto de vista do comensal. Podemos até identificar elementos relacionados à mudança do gosto, a um novo espírito do tempo. Mas não nos iludamos: é a economia.
Há um outro movimento que, já mais bem delineado nos EUA, vai se espraiando por aqui. É a ressaca da onda dos food trucks. Saudados como um bálsamo para um mercado inflacionado, os caminhões de comida prometiam preços competitivos e refeições sem frescuras. Porém, apenas alguns (bem poucos) se revelaram realmente bons e, no geral, seus preços parecem sempre estar além do que seria justo. Voltando ao cenário americano, os food trucks têm sido jantados – com o perdão do termo – pelos estabelecimentos de casual dining (e seus menus com preços agressivos e atendimento eficiente). Eis a questão: para o cliente, é melhor pagar US$ 10 para traçar um hambúrguer sob o sol, ou desembolsar US$ 12 num almoço executivo genérico mas com direito a mesa, talheres e serviço? A resposta não é difícil.
A exuberância da década passada, quando muitos salões estavam cheios e quase ninguém ligava para a conta, produziu um período de grande prosperidade no meio. Mas também gerou distorções: muitos restaurantes caros e pesados
A exuberância da década passada, quando muitos salões estavam cheios e quase ninguém ligava para a conta, produziu um período de grande prosperidade no meio. Mas também gerou distorções: muitos restaurantes caros e pesados, com brigadas inchadas e um assustador inventário de custos fixos; e comensais pouco devotados a um exercício mais crítico dos seus direitos de consumidor. (Foi quando passei a tratar, em minhas resenhas de então, não apenas do preço, mas do valor, isto é: do retorno obtido por aquilo que era pago). Agora que os recursos minguaram, a produtividade e o olhar atento sobre cada tostão passaram a ser as prioridades, de lado a lado do balcão.
Então, retornando à tal paisagem arquitetônica do início do texto: será que estamos em pleno processo de erosão, com risco de desabamento? Em alguns momentos, tudo leva a crer que sim. Em outros, eu olho pelo retrovisor, relembro outras fases recessivas, constato como o universo da gastronomia evoluiu no Brasil e acredito que, no fundo, tudo isso vai passar, ainda que deixando graves fissuras. Estamos, na verdade, é em plena reorganização do território.
* Luiz Américo Camargo é comentarista e consultor gastronômico, especializado em eventos e produção de conteúdo. Foi um dos fundadores do Paladar, marca de gastronomia de O Estado de S. Paulo. É também colunista do jornal Zero Hora.
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