_
_
_
_
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

A agenda urbana

Acabou o pacto entre o Estado brasileiro e o concreto armado

Vista de Brasília.
Vista de Brasília.Saulo Cruz (Agência Câmara)
Mais informações
A cidade vista do céu
O arranha-céu ocupado de São Paulo
Por que você deveria prestar atenção na licitação de ônibus de São Paulo
A favela do Parque Cidade Jardim: uma metáfora da São Paulo moderna
São Paulo quer se apropriar de si mesma

O manifesto público da empresa Andrade Gutierrez nos principais jornais do país é documento simbólico do início do fim do longo ciclo iniciado com a construção de Brasília, no qual a ideia de nação moderna, rica e potente, gestada nas entranhas do Estado, teve como parceiro as empreiteiras nacionais, que terminaram tornando-se "muito grandes para acabar” (assim como os principais bancos norte-americanos após a crise de 2008).

Neste documento a empresa assumiu responsabilidades sobre erros cometidos e afirmou compromisso com práticas éticas, e com adoção do projeto executivo completo, uma das origens dos problemas.

A ditadura militar aprofundou as relações entre governo e empreiteiras, esclarecidas soberbamente no livro “Estranhas Catedrais” de Pedro Henrique Pedreira Campos, não apenas como sistêmicas relações econômicas de trocas escusas mas como uma unidade político-social.

A luta pelas Diretas Já ocupou espaços públicos e criou emblemáticas imagens de cidadania com a população na Candelária, no Rio, ou na Praça da Sé, em São Paulo, e mesmo tendo sido frustrada nos seus objetivos, inaugurou um ciclo de otimismo político e que trouxe também inspirações para o urbanismo brasileiro. Havia o sonho de uma agenda urbana nova.

O processo de redemocratização foi marcado pelo desejo de melhores cidades, de participação e curiosamente de anseio por centro urbanos revitalizados, com mais moradia, com espaço público para pedestres e com o patrimônio cultural reabilitado. Deste modo, a reconstrução política e da esfera pública significava também revitalização dos espaços urbanos centrais onde a população havia reunido-se para clamar por seus direitos.

O Rio de Janeiro criou o programa Corredor Cultural, preservando, reconquistando a paisagem urbana histórica e remodelando espaços públicos, liderado pelo urbanista servidor público Augusto Ivan Freitas Pinheiro. A restauração do Paço Imperial na Praça XV carioca era outro marco da retomada do Centro do Rio. São Paulo faz a urbanização do Vale do Anhangabaú, após concurso nacional que selecionou projeto dos arquitetos Jorge Wilheim, Jamil Kfoury e Rosa Grena Kliass. A prefeitura de Salvador convida Lina Bo Bardi, Marcelo Ferraz e Marcelo Suzuki para elaborar um plano de recuperação do Centro Histórico. Curitiba, que desde os anos 70, graças ao urbanista-político-prefeito Jaime Lerner, mas especialmente a partir dos anos 80, consegue aprofundar e estruturar prática respeitável de planejamento urbano integrado.

Mais de 30 anos depois todas estas centralidades históricas são ainda ambientes urbanos frágeis e insustentáveis. São vazios, com pouquíssima ocupação residencial, com patrimônios abandonados (como poderemos ter turismo sério com prédios magníficos em ruínas?) e com espaço público deteriorado pela informalidade e sem consideração com o pedestre.

Desde a redemocratização, fomos vitoriosos na agenda econômica, criando uma moeda forte e estabilizando as finanças públicas, e solidificando aí um nova institucionalidade, a ponto de, quando foi ameaçada, como agora, acabar levando a presidente da República ao impedimento. Estas conquistas não foram perfeitas, muito há ainda por fazer, mas há senso comum de que este é um valor coletivo fundamental.

A agenda social foi também enfrentada e equacionada. Milhões foram incluídos, surge uma nova classe média ascendente e novos parâmetros sociais e até culturais são estabelecidos no país: a diversidade, o acesso a bens de consumo mas também a serviços públicos, o salto educacional. Estes feitos também não foram absolutos. Muito é necessário ainda. Mas do mesmo modo há compreensão clara que esta agenda não pode mais retroagir e que é a base dos anseios da sociedade, e mesmo políticos de linha retrógrada ao assumirem, como agora, afirmam compromisso com o social. Este é um legado inquestionável.

Acontece que em 2013 descobrimos da maneira mais dura que nossas cidades continuavam ruins como estavam durante a redemocratização, quando, após os longos anos 70, foram vitimadas por políticas urbanas autoritárias, destruidoras do espaço público, do patrimônio, plenas em lugares de exceção, com a explosão demográfica trazida pelo “Brasil Grande” aumentando significativamente a informalidade territorial em um cenário de absoluta ausência de políticas habitacionais (que perdura até hoje). Vimos, ao longo dos 70, o domínio absoluto do carro como cânone das dimensões urbanas, dando ao pedestre um papel passivo e servil.

Pois em 2013 descobrimos que a agenda urbana era prioritária, com as pessoas novamente ocupando os centros históricos e exigindo serviços públicos e cidades com padrão “FIFA”.

Percebemos que o urbanismo brasileiro continuava a perder de 7 x 1.

O que aconteceu entre 1984 e 2013 que não conseguimos implementar cidades melhores?

Mesmo vencendo as partidas contra os problemas econômico e social, que puderam ser trabalhadas dentro do tempo de mandatos políticos, o território urbano demanda mais tempo e planejamento para alcançar resultados.

Dotar as cidades de infraestrutura de mobilidade eficiente, baseada em transporte público de alta capacidade, e com qualidade, é por exemplo, um investimento contínuo, que precisa perdurar por distintas administrações, e envolver diferentes partidos políticos.

As políticas habitacionais são uma vergonha nacional, tanto pela ausência de modelos que garantam acesso a cidade, como para que possam lidar com a variedade social que temos. Se o ciclo da agenda econômica melhorou as condições de financiamento e crédito, e o ciclo social aumentou consideravelmente o acesso para a nova demanda, por outro lado não houve combate à informalidade, não houve urbanização de favelas e não houve ocupação residencial dos centros urbanos. O Minha Casa Minha Vida é a pá de cal da capacidade do governo federal de entender a crise urbana brasileira pois é uma programa segregador e anti-urbano.

O fato é que tanto PSDB, quanto PT, repetiram o sonho de JK, e mantiveram as mesmas alianças entre governos e empreiteiras que a ditadura militar gestou e pariu, pois ambos, de direita e de esquerda, são filhotes da concepção de um Brasil modernista, grande, desenvolvimentista, onde o interesse público que precisa ser materializado através de planos urbanísticos de longo prazo acaba sendo posto de lado em visões pragmáticas de administrações de 4 anos, incapazes que foram, e são, estes partidos de firmar pontos comuns do interesse público para a agenda urbana.

Não há clareza que esta condição mude. Este ano com eleições municipais corremos o risco dos debates ficarem circunscritos às questões da política nacional e o olhar necessário sobre como realizar e entregar melhores cidades tanto para a geração de 84 quanto para a de 2013 poderá não ocorrer.

A agenda urbana é a mais prioritária para o Brasil que adentra o século XXI com seus legados impressionantes na área econômica e social, mas só realizaremos isso com prefeitos mais competentes e capazes politicamente de comprometer-se com o verdadeiro interesse público de planos urbanos que extrapolem o tempo de suas administrações, entregando para a sociedade além de obras, metas, e provando ao setor privado que esta prática, além de lhe ser mais conveniente, é também mais ética. Precisaremos também de presidentes que acolham a agenda urbana como prioridade nacional e que trabalhem próximos dos prefeitos, pois sabemos que ninguém vive na União ou no Estado, vivemos nas cidades, e são nelas que estão as novas riquezas que precisam ser compartilhadas.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_