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Começa o segundo impeachment da democracia

Deputados iniciam nesta sexta sessão de votação que só vai terminar na noite de domingo

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Rodolfo Borges

O processo de impeachment que levou à renúncia de Fernando Collor de Mello em dezembro de 1992 parecia único. A cada pedido de impeachment engavetado durante as presidências de Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva reforçava-se a impressão de que a política brasileira pós-ditadura havia se afastado de maiores sobressaltos e deixado sem uso o instrumento mais radical de sua Constituição. Vinte e quatro anos depois, contudo, o caldeirão formado por erros políticos, crise econômica e um implacável presidente da Câmara dos Deputados que busca sobreviver a um escândalo de corrupção que ameaça tragar boa parte do sistema político chega ao ponto de ebulição nesta sexta-feira. Às 8h55 começa oficialmente o processo de impedimento da presidenta Dilma Rousseff, que culmina com a votação aberta dos 513 deputados da Câmara nesta domingo.

Até lá, quando os deputados devem passar um a um na tribuna para dizer sim ou não ao processo de afastamento da petista, Dilma enfrentará seu período mais intenso de agonia desde que chegou à presidência como herdeira do legado de Lula. Parte do país partilha o incômodo por ver uma presidenta eleita há pouco mais de dois anos caminhar para a perda de seu mandato. Do outro lado, uma maioria — 60% a julgar pelas pesquisas do instituto Datafolha — apoia o processo contra o Governo. A divisão, ao contrário do quase consenso catártico da jovem democracia que ejetou Collor, produz o clima predominante de incerteza em relação ao dia seguinte qualquer que seja o desfecho do processo.

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Mesmo acostumada a escândalos, Brasília surpreendeu o público brasileiro em sua atual temporada — com reviravoltas frenéticas que tornaram as comparações com seriados norte-americanos como House of Cards um clichê. Na disputa pelo poder, Dilma Rousseff e o candidato derrotado por ela no segundo turno de 2014, o senador Aécio Neves (PSDB-MG), ganharam a companhia do habilidoso Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que atingiu protagonismo ímpar na história dos presidentes da Câmara. O presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), surgiu na sequência do rompimenro de Cunha com o Governo, como escudo protetor de Dilma no Senado. Mas as peças do jogo mudavam praticamente a cada semana, sempre que a Operação Lava Jato virava o tabuleiro.

Acossada pelas investigações de corrupção na Petrobras, que envolveram desde os maiores empreiteiros com obras estatais até membros de seu partido e de sua base apoio, Dilma não soube lidar com aliados instáveis e indóceis, que começaram a se rebelar ainda em seu primeiro mandato. Em fevereiro de 2015, um mês após a sua posse, enveredou por uma estratégia de tentar enfraquecer o maior aliado, o PMDB, de quem se via refém. Perdeu e criou seu maior inimigo, com a eleição de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara naquele mês. De ali então, seu Governo ficaria contra as cordas na Casa.

Cunha, com apoio tácito de uma oposição disposta a encurtar um mandato em crise, acenaria por meses com a possibilidade de abertura de um processo de destituição – é o presidente da Câmara que tem o poder de aceitar ou não um pedido. Depois que a Operação Lava Jato demonstrou que o peemedebista mantinha milhões não declarados na Suíça, Cunha passou a ser alvo de processo de cassação no Conselho de Ética da Câmara. Já vivia uma guerra aberta com o Planalto, derrubando projetos de interesse do Governo, e no mesmo dia em que os petistas decidiram que votariam por sua perda de mandato, ele deflagrou, em 2 de dezembro, a guerra do impeachment.

Foi a coroação de um ano turbulento em que Dilma foi acusada de não entregar o que prometeu em sua enfática campanha anti-austeridade, num "estelionato eleitoral" simbolizado pela escolha do banqueiro Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda. A presidenta se desgastou perante o eleitor brasileiro com as medidas de cortes de gastos (incluindo o congelamento do reajuste do maior programa social, o Bolsa Família) em meio aos aumentos da inflação e do desemprego e maior recessão em décadas. Tudo, acusam seus opositores, era fruto de escolhas econômicas erradas e manobras fiscais para maquiar o rombo nos cofres estatais, além das consequências do fim da bonança internacional. O descontrole das contas, simbolizado pelas "pedaladas fiscais", acabaria se tornando o motivo oficial de sua possível derrocada.

Sem implicação contundente, pelo menos até agora, no escândalo da Lava Jato, Dilma viu seis decretos para aumentar gastos públicos e uma "pedalada fiscal" que obrigou um banco público a cobrir um programa de financiamento agrícola serem o embasamento jurídico do impeachment. O motivo era bem mais complexo de entender, diga-se, do que as acusações de corrupção passiva e formação de quadrilha que pesavam contra Collor. Mais: seus pecados parecem proporcionalmente pequenos diante de um Congresso coalhado de investigados por corrupção – e assustado com a Lava Jato – que se especializou em aprovar aumentos de gastos populistas no último ano. O paroxismo mergulhou os brasileiros em uma exaltada discussão sobre a natureza do impeachment, mescla de julgamento jurídico com voto de desconfiança parlamentar.

Novos atores

Depois de aceito o processo de impeachment, a trama ganharia outros protagonistas no Supremo Tribunal Federal (STF). Os ministros do STF definiram o rito do impeachment e passaram a ser buscados a cada passo em falso do processo conduzido por Eduardo Cunha, que se equilibrava entre a condução do impedimento e sua defesa no Conselho de Ética. Com a intensificação da crise, o vice-presidente da República, Michel Temer, ensaiaria uma aproximação com a presidenta Dilma, mas a desconfiança entre os dois acabaria por levá-los a um rompimento irreconciliável. Às vésperas da votação crucial do impeachment, Temer negocia a luz do dia a formação do Governo que pode herdar.

Trunfo do Governo, o ex-presidente Lula chegou a animar o Palácio do Planalto com a perspectiva de dias melhores, mas sua posse na chefia da Casa Civil se tornou problema ao invés de solução. O retorno de Lula a Brasília foi interpretado como tentativa de escapar das investigações da Lava Jato conduzidas pelo juiz Sérgio Moro. O questionamento de sua posse no STF limitou a atuação do ex-presidente enquanto articulador do Governo, e os partidos aliados foram progressivamente abandonado a base: PRB, PMDB, PP e PSD anunciaram rompimento e entregaram seus cargos.

Sem condições de resistir à debandada no Congresso Nacional, o Governo tentou uma última cartada no STF. O advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo, pediu a nulidade do processo de impedimento aberto na Câmara. A maioria dos ministros do Supremo não se mostrou disposta, contudo, a interromper o processo, já que não consideraram que houve cerceamento do direito de defesa — para alguns deles, isso só poderia ser alegado no Senado, onde, como definiu o próprio STF, ocorre o julgamento propriamente dito. Restou para Dilma o apoio de setores sociais, como o de entidades como a União Nacional dos Estudantes (UNE), e culturais, como músicos, atores e intelectuais ligados historicamente à esquerda, além do protesto de um grupo de juristas, economistas e intelectuais que veem uma razão frágil no pedido de impeachment para justificar seu afastamento.

A falta de consenso popular, uma diferença fundamental na comparação com o impeachment de Collor, sustentou as esperanças do Governo de superar seu pior momento e remontar suas bases, mas não foi o bastante para evitar a chegada do processo de impeachment ao plenário da Câmara. Ainda que a votação no domingo reúna o mínimo exigido de 342 para encaminhar o pedido de impedimento ao Senado, Dilma seguirá presidenta da República na segunda-feira e promete continuar na batalha por seu mandato até o fim. Mas é cada vez mais difícil imaginar como ela permanecerá comandando o país nas semanas seguintes.

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