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Impeachment de Collor revisitado: história joga luz sobre pontos cruciais da crise

Em comum com 1992, há a crise econômica, mas há muitas diferenças no processo. Entenda

O presidente Collor deixa a presidência em 1992.
O presidente Collor deixa a presidência em 1992.Elza Fiuza/ABr

Apesar de breve, o anúncio do desembarque do PMDB do Governo de Dilma Rousseff, feito na terça-feira 29 de março, foi um momento de forte déjà vu para muitos brasileiros que vivenciaram em 1992 o impeachment de Fernando Collor de Mello. Lá estavam, representados de alguma maneira, a erosão do apoio político e os gritos de rejeição à corrupção e de ovação ao vice que poderá substituí-la no cargo, sem falar nas fartas acusações. São os mesmos ingredientes da receita que culminou na destituição do primeiro presidente brasileiro eleito diretamente cinco anos após o fim da ditadura militar (1964-1985), e que agora esquentam o caldeirão que pode afastar Dilma do poder.

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Entre Collor e Dilma, ele eleito com 53% dos votos e ela, com quase 52%, 24 anos se passaram, e muita água correu debaixo da ponte. Não só eles são figuras completamente diferentes, como o país e o contexto político, econômico e social são outros. Mesmo assim, há razões para revisitar o passado. O impedimento dele – hoje senador pelo Estado de Alagoas e apoiador de Dilma –, o primeiro da História na América Latina, serve de referência técnica para os encarregados do processo que atualmente corre na Câmara de Deputados contra ela, além de oferecer um panorama de semelhanças e diferenças que ajuda a esclarecer o tema na cabeça dos cidadãos.

O primeiro aspecto quando se fala no impeachment de um presidente da República – um processo diretamente ligado à vontade política dos atores nele envolvidos, que ditam a velocidade em que ele caminhará – é determinar se há crime de responsabilidade. Em 1992, Fernando Collor foi investigado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que encontrou indícios de crimes como corrupção passiva e formação de quadrilha. Anos depois ele seria inocentado no Supremo Tribunal Federal (STF) das acusações formais.

Dilma aborda a crise de seu Governo em evento do programa 'Minha Casa Minha Vida', em Brasília, nesta quarta, 30 de março.
Dilma aborda a crise de seu Governo em evento do programa 'Minha Casa Minha Vida', em Brasília, nesta quarta, 30 de março.ADRIANO MACHADO (REUTERS)

No caso de Dilma, o pedido de impeachment que tramita na Câmara se baseia neste momento, principalmente, na emissão de decretos de suplementação orçamentária em 2015 quando o Governo já sabia que não teria fundos. De acordo com a acusação, isso fere a lei de Responsabilidade Fiscal, ou seja, que prevê que não se possa gastar quando não há recursos equivalentes. Isso seria crime de responsabilidade, o que o Governo nega. 

O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, descartou do texto original do pedido de impeachment dois outros elementos: as pedaladas de 2014 - maquiagem para disfarçar rombo nas contas públicas, mas do mandato passado, e, portanto para ele, inválidas para o processo - e a responsabilização de Dilma Rousseff pelo escândalo da Petrobras, que Cunha descartou por baseada em "ilações". O presidente da Câmara abriu a porta, no entanto, para que a comissão possa voltar a incluir esses elementos, não sem uma esperada controvérsia a respeito.

"Conjunto da obra" 

Dilma, até o momento, não é investigada formalmente em nenhum processo. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, usou a delação premiada do ex-senador petista Delcídio do Amaral, que acusa a presidenta de tentar obstruir à Justiça na Lava Jato, para pedir mais informações ao STF. Daí poderia eventualmente vir uma investigação. Tampouco há análise definitiva do STF sobre o conteúdo da conversa da mandatária com Lula, interceptada pela Polícia Federal em março. Para seus detratores, a gravação caracteriza uma tentativa de obstrução das investigações capitaneadas pelo juiz Sérgio Moro. Dessas duas frentes poderiam vir complicadores para eventualmente configurar crime de responsabilidade. 

A dúvida é se será necessário, na queda de braço política, esperar algo mais contundente além das cartas já postas sobre a mesa. O ambiente político está deteriorado, em grande parte pelas especulações, e as pedaladas e os decretos de suplementação orçamentária ­–  para muitos especialistas insuficientes para justificar o afastamento – hoje fazem o impeachment da presidenta ganhar forma e andar a passos largos. Como costuma afirmar Mozart Vianna, que foi secretário da mesa da Câmara de Deputados nos mandatos de 12 presidentes da casa, “no caso de um impeachment, o importante é o conjunto da obra”.

No “conjunto da obra”, corrupção e crise econômica representam a gasolina que faz um mandato sob esse tipo de questionamento queimar mais rápido. Os escândalos envolvendo o PT no âmbito da Lava Jato são para Dilma o tipo de material corrosivo que acabou com Collor, assim como a complexa crise econômica vivida hoje pelo país – que, no começo dos anos 90, estava relacionada à alta inflação e ao Plano Collor, que culminou na maior recessão da história brasileira até então. “Se fosse um momento de popularidade para a Dilma, as pedaladas, a meu ver, não seriam suficientes. Mas o Governo tem hoje uma popularidade muito baixa. Sem falar que vivemos uma crise econômica seríssima”, opina Vianna, que à época do impeachment de Collor foi o responsável para que a votação da Câmara fosse aberta, respondendo ao desgaste político e ao clamor popular por sua sanção. Vianna atualmente está em outro posto estratégico, assessorando o vice Michel Temer.

Os "caras-pintadas" contra Collor em Brasília.
Os "caras-pintadas" contra Collor em Brasília.Sergio Lima/ABr

Apoios políticos e manifestações populares

O apoio político é um aspecto que diferencia os dois impeachments. Enquanto Collor foi lançado à presidência através do PRN – um partido inexpressivo e sem projeto maior do que o de empossar um autoproclamado “caçador de marajás” – e se viu politicamente isolado ao lado de Antonio Carlos Magalhães e Lionel Brizola, políticos favoráveis à sua continuação no poder, Dilma conta com o respaldo de sua legenda, o PT, de partidos aliados, como o PC do B e o PDT. Sem falar do apoio de movimentos sociais, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST). Dentro do próprio PMDB, que abandonou o Governo, houve resistência de ministros em deixar o Governo apesar da determinação do partido, como é o caso de Katia Abreu, da Agricultura, e Marcos Pansera, de Ciência e Tecnologia. Além disso, deputados, ainda que em minoria, falam em votar contra a saída da presidenta.

Já as ruas, que em 1992 foram tomadas pelos “caras-pintadas”, em uma manifestação massiva contra Collor que reforçava seu isolamento, hoje não encontram consenso em relação ao afastamento da presidenta. Na maior das comoções pela saída de Dilma deste ano, registrado no dia 18 de março em São Paulo, 500.000 pessoas foram à Avenida Paulista protestar. Poucos dias depois, 100.000 manifestantes voltaram a ocupar a avenida, desta vez a favor de sua permanência. Há diferença importante nas cifras, mas o lado mais fraco da balança está distante de zero. O mesmo presidente da Comissão Especial de impeachment, Rogério Rosso, admite diferenças. “O embate no caso do Collor foi muito menor. O país tinha quase que uma convergência naquele momento. Hoje, não”, reconheceu Rosso, em entrevista ao EL PAÍS.

A começar pela resistência de juristas, que enxergam no pedido de impeachment, que corre na Câmara, um processo açodado que fere a Constituição. Há, pelo menos, 27 manifestos do gênero. Cientistas políticos também têm falado abertamente contra a saída da presidenta pela mesma razão. Dilma conta também com o apoio de pensadores e personalidades com influência no establishment midiático-cultural, como o escritor Chico Buarque, ou o ator Wagner Moura. Diferentes manifestos de representantes da Cultura e da academia, dentro e fora do Brasil, circulam nas redes contra o impeachment. Collor, à sua vez, não teve apoio neste sentido.

Nas palavras do escritor e jornalista Mario Sergio Conti, autor de Notícias do Planalto, que destrincha o afastamento de Collor a partir de uma análise do papel da imprensa: “Dilma conta com a sustentação de um partido estruturado, com governadores e prefeitos, e que teve excelente votação em 2014 – ainda que o PT seja contra a política econômica da presidenta, e que o apoio a ela fora do partido esteja erodindo. Ao contrário de Collor, Dilma tem um amparo popular expressivo”, analisa.

Papel da imprensa

Comparando os dois cenários de crise, a mídia teve papeis bastante distintos no afastamento de Collor e, agora, no processo que corre contra Dilma. Nos anos 90, o a imprensa era analógica e consideravelmente mais homogênea, distante da realidade eletrônica de hoje, em que as notícias têm a urgência da Internet e circulam, muitas vezes carregadas de juízos, por redes sociais. Mario Sérgio Conti resume essa diferença na capacidade de apuração jornalística que, segundo ele, hoje é inferior.

“No impeachment do Collor, a imprensa teve um papel preponderante de apurar a corrupção. Os repórteres suaram a camisa para mostrar os podres do Planalto. E as reportagens tiveram um peso enorme. Agora, a imprensa não apurou quase nada”, diz o apresentador do programa Diálogos, da Globonews. Para ele, que começou sua trajetória em 1977 na Folha de S.Paulo, onde atualmente é colunista, “hoje há um opinionismo desvairado, potencializado pelas redes sociais, com seus posts e comentários, em que todo mundo sobe num caixote, grita e opina”.

O juiz Sergio Moro em um evento sobre a operações anti-corrupção em SP na terça, 29 de março.
O juiz Sergio Moro em um evento sobre a operações anti-corrupção em SP na terça, 29 de março.AFP

Protagonismo do Judiciário e o elemento surpresa

Um fenômeno ao que o país não assistiu na década de 90 foi o destaque do poder Judiciário no contexto do impeachment. Com a força, inclusive junto à população, da Operação Lava Jato, o Ministério Público vive dias de fama nunca antes vistos no país. Para Mozart Vianna, de uma posição central na Câmara dos Deputados durante o impeachment de Collor e em distintas CPIs ao longo dos anos, isso se deve ao “cenário de enfraquecimento geral (do Executivo, do Legislativo...)” e “ao empenho pessoal do juiz Sérgio Moro, que tomou a tarefa para si”. Empenho esse que Conti vê com parcimônia: “É bom que a Justiça vá atrás de corruptos. Mas vejo setores do Judiciário extrapolando suas funções, e juízes virando justiceiros, celebridades”.

Outra novidade dos dias atuais é a presença, na equação, do que se poderia chamar de elemento surpresa. Se, uma vez marcado, o caminho de Collor para fora do Planalto foi traçado com rapidez e sem sobressaltos maiores, o de Dilma é afetado por revelações que surgem principalmente no âmbito da Lava Jato – como a delação premiada do senador Delcídio do Amaral, ainda sem provas que a sustentem, mas que implicou a presidenta e aliados seus, entre eles o ex-presidente Lula.

Em pleno desenrolar, as investigações de Moro deixam aceso um alarme permanente e podem mudar o curso da crise, a depender do que surgir. “A situação é por demais volátil. Há ainda muito para acontecer até a votação da Câmara. Qualquer fato dramático pode alterar o resultado”, resume Conti.

Na derrocada de Fernando Collor, um elemento aparentemente pequeno, porém "vergonhoso", conforme foi noticiado à época, foi essencial para manchar de vez sua imagem: o Fiat Elba. Comprado com recursos provenientes de corrupção, o carro que servia a casa do ex-presidente acirrou os ânimos tanto da população como do Planalto. A imprensa e a CPI da época já se debruçavam sobre os esquemas de lavagem de dinheiro do ex-tesoureiro de Collor, Paulo César Farias, mas a entrevista detalhada do motorista Eriberto França, que dirigia o Elba para os Collor, daria a IstoÉ  aceleraria seu destino. O autor da entrevista foi nada menos que João Santana, que anos depois voltou a influir nos desígnios da presidência como marqueteiro petista. Agora há quem aposte que, preso na Lava Jato, Santana poderia, se resolver fazer delação premiada e falar eventuais irregularidades nas contas de campanha de Dilma, se converter ele mesmo em Eriberto. Dilma Rousseff disse a jornais estrangeiros, entre eles o EL PAÍS, não temer por isso. 

Pós-impeachment

Em 29 de dezembro de 1992, Fernando Collor renunciou horas antes de seu processo chegar ao Senado onde seria julgado por crime de responsabilidade – e perdeu seus direitos políticos por oito anos. A saída sem resistência de um presidente levou em conta a expressiva votação favorável a sua saída: 441 deputados votaram pelo impeachment, e somente 38 votaram contra. Não houve comoção com a sua desistência, o que facilitou a recomposição da vida política do país e, inclusive, uma aguardada resposta positiva da economia. “O processo foi mais ou menos pacífico, no qual só foi preciso reconstruir pontes, achar o caminho de volta à normalidade”, relata Mozart Vianna.

A sucessão foi facilitada pelo caráter do então vice-presidente, Itamar Franco, como lembra o hoje deputado estadual Ibsen Pinheiro (PMDB-RS), responsável por receber o pedido de impeachment em 1992 como presidente da Câmara. "Itamar era apenas o vice-presidente na época. Hoje, Michel Temer é vice-presidente da República e presidente do PMDB", comentava Pinheiro após à reunião de desembarque do PMDB do Governo Dilma. Esse caráter de líder político de Temer causa ruído no atual processo de impeachment, já que qualquer atitude do vice — como enviar uma carta cheia de mágoas à presidenta ou clamar por alguém que unifique o país — soou como conspiração para uma parte expressiva da sociedade.

Dilma Rousseff afirmou mais de uma vez que não renunciará à presidência da República. Seus aliados políticos, caso ela seja afastada, já prometeram uma reação ao que consideram ser um “golpe à democracia”. O mesmo discurso inflamado vale para os que são contra a permanência da presidenta no cargo, caso o impeachment seja uma possibilidade afastada pela Câmara. Sendo assim, o que no passado foi uma reorganização da casa, hoje pode se tornar uma nova guerra, de um lado ou de outro, se as reações dos derrotados guiarem o pós-impeachment nos termos da ira.

É onde as opiniões dos analistas facilmente coincidem: o dia seguinte vai ser bem diferente. “Vivemos uma crise de confiança. É preciso recuperá-la. O vice-presidente é habilidoso, tem boas relações com o empresariado e com diferentes setores, mas, ao menos em um primeiro momento, os movimentos que hoje dão sustentação ao Governo de Dilma podem oferecer resistência”, diz o ex-secretário. De fora da arena política, Conti se exalta mais: “Virá, suponho, um período nebuloso e turbulento. É possível que a economia dê uma melhorada momentânea, caso ela caia. Vamos ser otimistas e dizer que isso acontecerá. Mas, depois de uns três meses, os problemas econômicos nacionais, os problemas estruturais, continuarão do mesmo tamanho. Temer tem uma varinha de condão para enfrentar tudo isso?”.

Com informações de Rodolfo Borges, de Brasília.

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