Juliano, o carroceiro de pouco estudo e interesse infinito
Carroceiro armou uma casa na calçada e combate a solidão com sua cachorra e acesso à internet
Se alguém estiver passando pelo bairro de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, e der com o Juliano Mineiro, é possível que ele vá logo dizendo que é "um carroceiro diferenciado". Só que para concluir isso não é necessário sequer puxar papo com o Juliano. Num cantinho da calçada da Ferreira de Araújo, vizinho de um comércio de restaurantes e bares tão descolados quanto caros, ele tem duas carroças: uma é a de trabalho, a outra é a de viver. A segunda tem porta, tranca, telhado, decoração e um cheiro constante daqueles espirais verdes que fazem fumacê para espantar mosquito. Cigarro no canto da boca, chinelo de dedo no pé, vassoura na mão, Juliano, aos 41 anos, se esforça para deixar tudo organizado e apresentável, afinal, é ali que vive há um ano e meio.
Quem passa entre 19h e 20h na calçada da Ferreira de Araújo, horário em que o Juliano já dividiu sua marmita com a cachorra Pretinha, vê uma luz azulada vazando da porta entreaberta da carroça. Faz coisa de alguns meses, deixou de lado a preocupação com o dinheiro pingando na poupança, sacou uma quantia, foi na loja de departamento Magazine Luiza e comprou um tablet. Desde, então, toda noite, depois de ter deixado o aparelho carregando no bar do lado, se espraia no colchão que tem dentro da carroça, acende um espanta mosquito, acomoda a Pretinha em algum canto e liga o tablet.
Com o wi-fi do bar – que deu a senha para ele – vai viajando na internet até o sono chegar. Não tem Facebook, porque não tem gosto para aparecer. Troca uns e-mails com as filhas, porque é mais barato que telefonema. Mas o que ele gosta de fazer mesmo é de pesquisar. Com o Youtube, dá pra descobrir tudo sobre o mundo, aprender como conserta tudo ou como as coisas são feitas. Diz que não tem estudo, que fez só até o primário, mas que, em compensação, tem um interesse infinito. Quer saber, por exemplo, do que é feito o ferro que recolhe no dia a dia, onde e porque o outro brota do chão, como é que faz para preparar a linguiça que ele almoça. A internet e a Pretinha. Duas companheiras que o Juliano usa para manter a cabeça no seu objetivo.
De segunda, quarta e sexta-feira é dia de fazer a coleta fixa. Acorda cedinho, antes de o sol nascer, dá de beber e comer para sua cachorra que passa os dias cuidando da casa, e sai puxando a carroça cinza de trabalho. Nas próximas horas, percorrerá pontos em que o material já é garantido: plástico, latas, papel e garrafas em baladas, restaurantes, padarias, escolas e escritórios que já deixam tudo separado.
É Juliano pegar, botar na carroceria e levar até o ferro velho no qual trabalha desde que deu em Pinheiros. Na hora do almoço faz uma pausa, come alguma coisa em um botequim conhecido, toca para a casa, bota coleira na Pretinha – que faz o maior alvoroço quando ele chega – e sai pra dar uma volta rápida para ela esvaziar a bexiga.
– É minha companheira, eu cuido dela e ela de mim. Quando me deram a Pretinha, em um Ecoponto, ela tava toda destruída. Alguém tinha jogado ela de cima da ponte da Cidade Universitária, lá na Marginal Pinheiros. Levei no veterinário, cuidei das feridas e hoje ela é minha companheira. Aqui na rua é muito sozinho, por isso eu quero juntar meu dinheiro e sair.”
De terça e quinta-feira é dia de garimpo. Às quatro da manhã já está montado na bike que deixa guardada amarrada em uma árvore entre as duas carroças. Sai assim, ainda de madrugada, pedalando, como uma espécie de batedor. Faz uma busca em caçambas e outros cantos atrás de material de valor: cobre, alumínio, ferro. No caso de encontrar, dá um jeito de moquear o achado e volta rapidinho pra Ferreira de Araújo para trocar a bicicleta pela carroça. Hoje em dia, ele explica, tá cada vez mais difícil de fazer o garimpo. A crise chegou e ninguém tá bobeando com material valioso. Juliano conta que os próprios pedreiros das obras ficam de olho vivo no que é descartado.
– Graças a Deus, desde que cheguei em São Paulo, nunca tirei abaixo de 50 reais num dia. Teve uma vez, logo no comecinho, que eu tava no Itaim e um moço de um prédio bacana me chamou. Eles tavam trocando os corrimões da escadaria toda. Foi um monte de alumínio maciço. Cinco mil reais em um dia. Mas isso é igual tirar na loteria. O trabalho de carroceiro, de comum, vai de momento. Tem é que ter paciência.
Finzinho da tarde, quando a luz do dia começa a acabar, ele volta para casa depois de percorrer, na estimativa dele, uns 15, 20 quilômetros, com uma carroça que, em média, pesa uns 70 quilos cheia. Fica por ali, fuma um cigarro de marca genérica, dá um jeito no seu espaço, varre as folhas caídas da árvore. A criançada que estuda em uma escola estadual logo em frente, sai em grupinhos dando risada alta.
De terça e quinta-feira é dia de garimpo. Faz uma busca em caçambas e outros cantos atrás de material de valor: cobre, alumínio, ferro. No caso de encontrar, dá um jeito de moquear o achado.
Alguns param para dar um afago na Pretinha, outros mexem nos bichinhos de pelúcia ou apertam umas buzinas que o Juliano pendurou para fora da carroça. Ele, quietão, branco, cerca de um metro e setenta e um sorriso de poucos dentes, agradece a atenção e cumprimenta com os olhos. É assim até que, toda noite, alguém do restaurante vizinho leva uma marmita para ele jantar.
“O Juliano é gente boa, cuida da rua, ajuda com a limpeza da calçada, é um ótimo vizinho, por isso damos a comida para ele”, conta um funcionário de lá. Só que além de que ele é gente boa, pouca gente sabe. É que o Juliano, nascido em Minas Gerais, faz jus ao estereótipo que diz que mineiro é um tipo calado, reservado, preocupado com seus assuntos. A conversa com ele é toda preenchida por silêncios ou por saídas pela tangente. Do que ele realmente tem prazer em falar é do futuro: está juntando dinheiro, toda semana deposita uma quantia na poupança, nunca deixa a grana dando sopa na carroça, gosta do trabalho, sonha em comprar uma van e abrir uma empresa de reciclagem. Por fim, planeja, todo dia, uma casinha na periferia, em Piraporinha ou no Jardim Ângela, onde pretende morar com as duas filhas e a mãe, que hoje vivem no interior.
Para São Paulo, Estado, Juliano veio aos 5 anos com a mãe. Atrás de trabalho, ficaram em um sítio em Bragança Paulista, cidade distante só 80 e poucos quilômetros da capital. Ali, viveu, casou, teve duas filhas – uma de 15 e outra de 16 anos – e viu sua mulher morrer de lupus. Desgostoso, ainda ficou por lá um tempo. Cuidava das terras, lidava com o gado, plantava. Quando o patrão morreu, contudo, seus filhos venderam o sítio, e com um aceno de mão deixaram o Juliano sem emprego e sem dinheiro. Há dois anos e meio, cansado, deixou a mãe, de 79 anos, cuidando das meninas, e pegando a Fernão Dias, veio andando para São Paulo. Manda uma remessa de 750 reais mensais para lá para ajudar com aluguel e outras despesas. Conversa com as três por telefone, por e-mail e de vez em quando pega um ônibus e vai até fazer uma visita. Mais que isso, Juliano não gosta de dizer muito.
Finzinho da tarde, quando a luz do dia começa a acabar, ele volta para casa depois de percorrer, na estimativa dele, uns 20, 15 quilômetros. Fica por ali, fuma um cigarro de marca genérica, dá um jeito no seu espaço, varre as folhas caídas da árvore.
Por aqui, já viveu em uma favela perto da Avenida Roberto Marinho, um dos primeiros lugares que conheceu na cidade. Foi lá que comprou sua primeira carroça, a mesma que hoje, com paredes de papelão e forrada com uma lona de plástico amarela, serve de moradia. Juliano explica que pra um carroceiro, a carroça própria significa independência. “Nos ferros velhos o pedágio pelo empréstimo do veículo é grande demais, te deixando escravo de um lugar só.”
A primeira carroça já foi alvo até do Pimp My Carroça, um projeto que faz grafitagem nas carroças e equipa os carroceiros. Não sobraram muitos vestígios do trabalho da reforma, mas o Juliano fala com orgulho que se você procurar o nome dele na internet vai encontrar um pouquinho da história dele no site do projeto.
Ele é uma das 214 pessoas que vivem nas ruas do bairro de Pinheiros, segundo o último censo de moradores de rua divulgado pela Prefeitura de São Paulo. O número corresponde a 2,9% de um total de 7.335 pessoas na cidade. A convivência nem sempre é fácil. É verdade que, como diz Juliano, carroceiro respeita carroceiro, mas também é verdade que viver na rua não é fácil e tem muita gente que cai na bebida e aí não dá paz para os outros. Por exemplo, ele já chegou a passar um tempo no Largo da Batata – no entroncamento do bairro com a Faria Lima, principal avenida de negócios da cidade – mas não aguentou muito tempo.
– Ali o negócio é meio de louco. Ninguém te deixa em paz, é briga e gritaria toda madrugada. E eu não bebo, não posso sentir nem o cheiro. Tem vez que vou pegar material nas baladas e fico enjoado só de sentir o cheiro de cerveja. Também não uso droga, só fumo os meus cigarros. É isso rapaz. Posso te chamar de rapaz porque você é menino novo, né? Eu sou diferenciado, tô aqui com um objetivo, não tenho passagem, quero juntar o meu e sair da rua.
Banho, o Juliano toma no ferro velho, antes de voltar para casa no final do dia. Banheiro ele usa no botequim de uns conhecidos. Roupa, como não tem onde lavar, compra quase toda semana uma muda nova. De vez em quando faz uns planos de botar um fogareiro dentro da carroça, mas tem medo de dar algum acidente. Além do mais, está juntando dinheiro para sair dali, pensa nisso todo dia e, por isso, reduz os gastos ao máximo possível. Outro dia, uma menina de uns 9 anos parou para dar um carinho na Pretinha. A babá, que a levava pela mão, ficou tensa. O Juliano pediu pra ela relaxar, a cachorra não faria mal. Aí a menina olhou para ele, para a carroça e depois perguntou, na inocência de uma criança que não conhece pobreza, se ele morava “naquilo”. Ele repetiu seu mantra diário dizendo com estoicismo que mora sim, mas que vai sair.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.