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Coluna
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Os italianos invisíveis de Minas Gerais

A imigração é sempre a encenação de uma tragédia. Quando assentado em outras plagas, o imigrante tem que inventar-se a partir do nada, reinaugurando-se dia a dia

Imigrantes são obrigados a deixar pra trás mais que seus objetos pessoais. Na imagem, uma jaqueta de criança encontrada em uma casa de refugiados abandonada na Turquia.
Imigrantes são obrigados a deixar pra trás mais que seus objetos pessoais. Na imagem, uma jaqueta de criança encontrada em uma casa de refugiados abandonada na Turquia.Chris McGrath (Getty Images)

Números nunca totalmente confiáveis indicam que Minas Gerais conta com cerca de 1,5 milhão de descendentes de italianos, dispersos pelas regiões Sul e Leste. No entanto, o Estado tem sido ignorado em quase todos os levantamentos oficiais sobre a imigração italiana para o Brasil. Poucos são os historiadores e pesquisadores que se dedicam ao tema e raros os resultados desses estudos. Se nos detivermos então à Zona da Mata, onde cidades inteiras ostentam indícios de presença oriundi, fica evidente o menosprezo a que fomos relegados.

Rara é a literatura (ficcional ou memorialística) a tratar da saga do imigrante no Brasil

Introduzido na Zona da Mata na década de 1830, o café iria adquirir importância fundamental no total das exportações brasileiras. Entre 1870 e 1880, para atender às exigências cada vez maiores de diminuição dos custos da produção, a malha ferroviária alcança a região. A mesma estrada que transportava as sacas para o porto do Rio de Janeiro conduzia de volta levas e mais levas de imigrantes que fugiam da miséria do Vêneto, norte da Itália. Durou pouco, no entanto, a euforia. Já no final da primeira década do século XX, a economia da Zona da Mata estava inteiramente desmantelada - o golpe fatal dado pela quebra da bolsa de Nova York em 1929 e a tomada do poder central por uma nova elite política, no ano seguinte. Assim, a região mergulhou num processo de letargia, que absorveu a quase totalidade de suas cidades. O empobrecimento empurrou as famílias imigrantes para a agricultura de subsistência, em terras pouco férteis e distantes dos centros consumidores.

Com o parco capital acumulado, os imigrantes conseguiram adquirir pequenos pedaços de terra (que chamavam genericamente de “sítio”), onde cultivavam, utilizando mão de obra familiar, produtos essenciais para o consumo próprio, como arroz, feijão e milho, legumes, verduras e frutas, além da cana-de-açúcar, que complementava a alimentação dos bois para abate e das vacas leiteiras, criados soltos no pasto. No quintal, mantinham as “criações”, frangos para corte e galinhas poedeiras, mas também patos, marrecos, perus e galinhas d’angola. Havia ainda porcos nos chiqueiros e, eventualmente, cabritos e coelhos. Como moeda de troca, além dos excedentes da produção caseira, apenas o fumo, que vendiam em cordas.

Vivendo de forma espartana, isolados em suas propriedades montanhosas, muitas vezes de difícil acesso, vencidas as distâncias a custo por meio de cavalos, charretes ou carros de boi, pouco tempo restava para a convivência com outras famílias. Os inúmeros filhos e filhas, embora compreendessem a língua dos pais, quando iam à cidade, por ocasião da missa de domingo ou de festas religiosas, batizados e casamentos, ou ainda de enterros, tentavam comunicar-se apenas em português para se sentirem pertencentes ao novo país. A primeira geração nascida no Brasil, portanto, já havia cortado os laços que a uniam à pátria distante. Além do idioma, substituiu hábitos alimentares e comportamentos, e nem mesmo os sobrenomes conseguiram manter: na hora de proceder ao registro dos descendentes, os escrivães, sem entender direito o português estropiado, anotavam o que lhes parecia ter um som assemelhado ao ouvido, que o imigrante, analfabeto, não conferia.

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A imigração é sempre a encenação de uma tragédia. Ao deixar o torrão-natal —e essa é uma decisão tomada quando já não resta nenhuma esperança—, somos obrigados a abandonar não apenas a língua materna, os costumes, as paisagens, mas, mais que tudo, os ossos dos entes queridos, ou seja, o signo que indica que pertencemos a um lugar, a uma família, que possuímos, enfim, um passado. Quando assentado em outras plagas, o imigrante tem que inventar-se a partir do nada, reinaugurando-se dia a dia, numa terrível luta contra a invisibilidade, numa incessante tentativa de não ser identificado como estrangeiro, forasteiro, estranho. Por isso, rara é a literatura (ficcional ou memorialística) a tratar da saga do imigrante no Brasil (seja de que nacionalidade for), e, quando existente, tende, na maior parte das vezes, a emular uma história edulcorada, como se, passando um verniz sobre as feridas, conseguíssemos estancar a dor causada pelo fato de não termos raízes.

O trajeto entre o desordenado núcleo urbano de Rodeiro, agora um importante polo moveleiro, e a Fazenda do Paiol, onde originalmente se estabeleceram os Ruffato, desdobra-se hoje em desoladora paisagem. Nos pastos ressequidos, cobertos por capim-gordura e retalhados em voçorocas, um pétreo silêncio esmaga as ruínas do que foram casas simples, emboçadas ou de pau-a-pique, dispersas pelo caminho. Se aguçarmos os sentidos, talvez ouçamos os murmúrios que o vento espalha, quase sobrenaturais, para além da poeira amarela e seca que ignora as cercas de arame farpado enferrujado. O incansável jorro de um cano de água que desaba num inútil tanque de cimento verde de lodo... O som preguiçoso de bambus que se esfregam se esfregam se esfregam... O tchibum de um tímido lambari oculto na loca de um córrego... O canto merencório de uma adivinhada juriti... O esvoaçar de uma seriema assustadiça... E, sobrepairando sobre tudo, uma terrível solidão, a solidão dos lugares abandonados, mortos...

O que restou da presença italiana por ali? Quase nada, além de sobrenomes mutilados... Os barulhentos jogos de truco e bocha... Alguns traços da culinária, quem sabe... A caçarola, espécie de pudim de queijo que devorávamos a caminho da roça... A minestra, a polenta à bolonhesa, o macarrão com abobrinha italiana, a sofisticada flor de abóbora à milanesa que minha mãe adornava caprichosa, e a inesquecível piada, algo como um crepe que meu tio Pedro nos ofertava em longínquos cafés da manhã de tempos idos... Que mais? Talvez um excessivo apego à família, uma inflexível ética do trabalho, um arraigado catolicismo, um certo otimismo ingênuo...

Luiz Ruffato é jornalista e escritor.

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