O pacto do amor conectado
Ninguém é tão importante que não possa estar fora do alcance. O mundo nunca está ligando tanto para a gente como a gente imagina. Que a prioridade seja quem amamos
O canalha existe praticamente desde o Gênesis. Maios ou menos depois do “fiat lux”, quando a terra ainda era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo... Mesmo antes de morder a maçã de Eva, ato que deu início à demonização cristã da mulher, Adão já se sabia sujeito à cafajestice e à infâmia universal. Meu Gênesis preferido, óbvio, é o desenhado pelo irmão de fé Robert Crumb, tão bom quanto o escrito no Antigo Testamento, coisa mais linda.
Todo esse nariz de cera bíblico para dizer à minha amiga Wânia –a mulher com “W” maiúsculo da música do grupo Mundo Livre S/A– que não foi o uso exagerado do smartphone que fez do seu marido, moralmente falando, mais canalha do ele que foi canalha uma vida inteira. As novas tecnologias apenas multiplicaram as chances do cafa, que já era cafa no telefone fixo, no orelhão ou nas cartas cujos selos lambia com devoção antes de enviá-las para as possíveis amadas/amantes destinatárias.
Sou do tempo em que os homens lambiam selos...
Wânia, hiperativa e interativa, me consultou durante um debate que participei nesta semana na sede do Twitter Brasil em São Paulo, a convite de uma empresa de telefonia, sobre o uso do celular e a sua interferência nos relacionamentos. Gustavo Gitti (site Papo de Homem) e o mediador Felipe Solari, a quem agradeço pela generosidade bonita, me ajudaram nesta linha de pensamento que vale não apenas para W.
Paranoia delirante, com ou sem amor, com ou sem tecnologia, é o que não falta no planeta.
O celular não inventou o desejo, a tara, o ciúme, a traição, a trairagem, a perversão, o pé-na-bunda ou a sacanagem propriamente dita. A pornografia tampouco nasceu com a tecnologia –é bem visível nos desenhos rupestres da Pedra do Ingá, na Paraíba, e em São Raimundo Nonato, no Piauí, onde temos notícia do primeiro homem das Américas.
Não mande nudes, me mande umas palavrinhas bem-escritas de desprezo que eu gamo, enlouqueço, apaixono
Os sete pecados capitais, sinto muito, amiga W., também são mais velhos que a roda e o cuspe da humanidade. O mundo não é melhor nem pior por causa das geringonças modernas.
O mesmo celular que acelera e multiplica as neuroses já latentes entre os casais também mata a saudade dos pombinhos à distância, opera milagres, gera gozos incríveis, alimenta perversões, fetiches e tantos aiaiais.
O bem ou o mal está no homem, não somente no aparelhinho que pisca por amor ou safadeza. A moral é demasiadamente humana diante dos três pontinhos que dançam no suspense dos anjos pornográficos do WhatsApp.
Tem gente que não aguenta esperar um segundo... Os três pontinhos dançam... A pessoa se arrepende... O outro lado enlouquece tentando imaginar o que foi evitado na escrita ou na mensagem de voz rouca e sexy na madrugada.
Olho no olho
Óbvio que a hiperconectividade, essa doença moderníssima, atrapalha a vida do casal. Lasca, muitas vezes, mata. Como o tal do bom senso –está para nascer a criatura capaz de definir que diabo seja isso– nem sempre prevalece, defendo que exista um pacto amoroso pela desconexão na hora certa.
Vamos ao pacto da desconexão amorosa, portanto:
Para começar, a receita é o princípio de talião do Código de Hamurábi (1780 a.C.), só que ao contrário. Olho no olho, dente por dente para prestar atenção no outro.
Durante as refeições a dois, por exemplo, importantíssimo que não se olhe o celular. Nem com aquela desculpa chinfrim, normalmente mentirosa, que está fechando o contrato do século. Quem quer te contratar com esse desespero todo, normalmente espera. Tu só ganharás com o suspense, te farás de difícil, deixa o(a) maluco(a), mais ansioso ainda, na espera.
Ninguém é tão importante que não possa estar fora do alcance. Ninguém é importante. O mundo nunca está ligando tanto para a gente como a gente imagina. Que a prioridade seja quem amamos. Pelo menos durante as três refeições. Principalmente durante o café da manhã, quando reinauguramos a vida mais uma vez, nem que seja com maçã da Mônica em vez da maçã do Gênesis, velho Crumb.
O bem ou o mal está no homem, não somente no aparelhinho que pisca por amor ou safadeza
Fora as três refeições, nada demais que o casal, pezinhos colados lá embaixo das cobertas, flerte com o mundo, abuse do charme, tire onda, espalhe e receba tesão... Isso até pode instigar uma bela transa dos dois, isso, de maneira alguma, configura traição, apenas o exercício diário do esporte olímpico mais praticado no mundo: o pulo da cerca virtual da existência.
Nada demais que o casal faça do massacrante Santos 2x0 Corinthians uma sala universal de TV no twitter... Nada demais que o casal divida o tesão televisivo da novela Verdades Secretas ali debaixo do mesmo edredon em Gonçalves, serra da Mantiqueira, Minas Gerais.
É dando que se recebe, como reza a oração de São Francisco, atualíssimas em tempos de ansiedade e de “manda nudes”.
Vale o pacto do casal até que o celular os una cada vez mais. A tecnologia não nasceu para separar ninguém. Por favor não fareje, qual um cão dos Baskervilles, a vida virtual do outro. Assinado, Sir Arthur Conan Doyle, um canalha desde o Gênesis, o maior escritor de romances policiais de todos os tempos.
Não mande nudes, me mande umas palavrinhas bem-escritas de desprezo que eu gamo, enlouqueço, apaixono. Fica a dica para as meninas matarem os meninos, tão jovens e já mortos na ansiedade por nada a dizer a essa altura.
Não mande nudes, mande mistérios, mande benditos, malditos, mande dizeres, palavrinhas esquisitas, páginas do Livro do Desassossego, mande, o vagabundo que se ligue e decifre o enigma. De que vale um homem óbvio?
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “Chabadababá –aventuras e desventuras do macho perdido e da mulher que se acha (editora Record).
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