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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

A batalha dos revoltados

Os protestos de agosto significaram um ajuste no imaginário político

Manifestantes na avenida Paulista, no último dia 16.
Manifestantes na avenida Paulista, no último dia 16. NELSON ALMEIDA (AFP)

Se a indignação contra a crise econômica e o ajuste fiscal do governo Dilma estavam intimamente ligados às manifestações de março deste ano, essa agenda já não mais aparece no discurso político virtual das principais organizações que coordenaram os atos de 16 de agosto em mais de 200 cidades brasileiras. O impeachment, até então considerado uma pauta lunática, se tornou o que dá vigor aos protestos. E ganhou até um Triunvirato que o alimenta e o convoca: as organizações que coordenam os movimentos de rua; o PSDB, sustentado por sua base eleitoral de 2014, que está nas ruas; e Eduardo Cunha (e os deputados aliados), que se mantém como instrumento acelerador da instabilidade parlamentar contra o Planalto.

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No domingo, as três organizações que realizaram os atos de rua —o MBL, o Vem Pra Rua Brasil e o Revoltados Online— passaram a adotar no Twitter, de modo sincronizado, as hashtags #ForaDilma, #ForaPT e #ImpeachmentJá, como indexadoras do descontentamento com o governo Dilma, gerando, respectivamente, 109.200, 45.900 e 9.800 tweets, produzidos por 28.520, 15.122 e 3787 usuários diferentes no Twitter.

Esse fluxo sincronizado de postagens colaborou na massificação do discurso pró-impeachment, que segue ganhando uma enxurrada de curtidas, compartilhamentos e comentários nas páginas dessas organizações no Facebook. Por lá, só no domingo, conseguiram 1,2 milhão de curtidas e comentários em suas postagens. Se, em março, termos como desemprego, inflação, crise, conta de luz ou Petrobras apareceram no radar desses canais de redes sociais, agora, em agosto, o discurso passou a ser mais auto referente (enaltecedor das imagens e números da ocupação das ruas) e focado numa identidade mais antipetista. As palavras Dilma, PT e Lula apareceram como as mais frequentes nas publicações com a hashtag. E o vocabulário da manifestação mudou de eixo: de Dilma para Lula, que agora virou boneco inflado, feito para virar memes, selfies e registros fotográficos para as redes sociais.

Para revigorar o Fla-Flu, o Triunvirato recebeu um apoio e tanto nas redes de robôs falastrões internacionais, que patrocinam uma bateria de ofensas, boatos e compartilhamentos para criar tendências artificiais de opinião em prol das pautas conservadoras globais (por um lado) e de crítica às muitas decisões políticas (equivocadas) dos governos de esquerda da América do Sul (por outro). O #16A passou a abusar de bots anticubanos, antivenezuelanos, antiequatorianos, antiKirshner, antiEvo. Quase 40% dos posts presentes no #ForaDilma e #ForaPT se originaram dessa rede robótica conservadora global, cujo efeito colateral é o de alimentar, em seus antagonistas, teorias conspiratórias (o “golpe”, o “Império”), defendidas pela militância petista. Essa família de bots —numa breve visita a seus perfis— tem por missão inundar de postagens hashtags como #FueraCristina, #FueraCorreaFuera e #FueraMaduro.

Apesar da intensidade dessas postagens, estas acabaram sendo combatidas no Twitter por hashtags da militância petista, que conduziram uma crítica debochada dos manifestantes ao mesmo tempo que desqualificava milhares de pessoas que estiveram nas ruas. A desqualificação então veio primeiro com a hashtag #VemProMico, depois com a #CarnaCoxinha, quando emplacaram o termo protesteiro, em alusão aos micareteiros de carnaval fora de época. Mas, não custa lembrar que, de longe, as milhares de pessoas não se enquadram no estereótipo do transloucado defensor do golpe militar que bots governistas querem fixar na opinião pública. Ao contrário, o que dizem as pesquisas sobre eles é que estão em processo de formação política, dentro de uma experiência coletiva, e não possuem visão política ortodoxa (defendem, muitas vezes, pautas progressistas) e entendem que o governo Dilma “traiu” duplamente o país, ao afirmar que não mexeria em direitos nem que a vaca tossisse e ao atrair um eleitorado mais à esquerda prometendo inclinar seu governo nessa direção.

Contudo, o que torna tudo mais complexo, é de se ressaltar também o caráter orgânico da viralização da hashtag, pois 33.645 perfis se engajaram na difusão da crítica ao #16A, um fato que deve ser explicado pela adesão de uma camada de rede não alinhada ao PT que resolveu interpretar as ruas pelo prisma das pautas levadas pelas faixas, cartazes e depoimentos, lidos como ultraconservadores e até fora da órbita do bom senso (intervenção militar, morte a ativistas, volta Sarney etc). Essa tabelinha entre militantes petistas e anti-conservadores também teve apoio dos veículos de imprensa, que, durante a semana, noticiavam a transloucada “Dancinha do Impeachment”, que foi remixada pela internet de humor brasileira. Essa conjugação de perfis provocou um comportamento de escárnio coletivo, em que perfis ficavam à espera do novo meme para compartilhar e satirizar os atos de rua. O domingo, nesse sentido, foi memético: 10.910 imagens compartilhadas no Twitter. E a semana política fechou com a toada midiática da ironia, ao mesmo tempo que a "Agenda Brasil", uma espécie de simulacro narrativo para as redes sociais, capitaneado por Renan Calheiros, Lula e Roussef, cumpria seu papel de levar o léxico conservador ainda mais para dentro do governo do PT.

Chegamos então numa situação sui generis no cenário político brasileiro. Pela esquerda, utilizando da brutalidade policial, a elite política bombardeou as pautas transversais das ruas de Junho 2013. Pela direita, utilizando da ordem jurídica e dos meandros de manobras regimentais no Congresso, isolou Eduardo Cunha (cujo efeito prático foi calá-lo nas redes sociais nesse #16A) e deixou o antipetismo das ruas gritar seu único refúgio eleitoral (agora o PSDB endossando o "fora", como os palacianos queriam, mantendo assim o Fla-Flu). O governo então embicou pra cima e, diferente do que aconteceu em março e abril, não precisou de convocar coletiva para dar a sua interpretação sobre as manifestações. Deu com os ombros, fez cara de paisagem. “Perdeu ganhando”.

Enquanto isso, no day after, a circulação de memes e selfies das manifestações pelo Brasil (pró ou contra elas) vai funcionando como uma espécie de "ajuste fiscal" do imaginário político. Cortes no custeio da indignação, que se vê entre a sátira das manifestação e a manifestação das sátiras antipetista, enquanto cortes de gastos sociais, refluxo de direitos trabalhistas, chacinas na periferia e brutalidade policial contra manifestantes em Belo Horizonte são verdadeiramente bloqueados pelos operadores do Fla-Flu, que se interessam em manter a interpretação das mobilizações sociais dentro de uma narrativa intitulada “indignados versus revoltados". Quer diz: os primeiros, resquícios das ruas de junho, exigiriam mudanças sociais à base de máscaras e coquetel molotov; enquanto os "revoltados", a massa de gente nas ruas da atualidade, reivindicariam câmbios que passariam por cima do ordenamento democrático brasileiro. Esse enquadramento é o que vem permitindo —dentro do imaginário político— o ajuste e, agora, a Agenda Brasil, não tendo grandes oposições políticas concretas, senão a dos “vândalos e coxinhas”, que é o modo repressor que os operadores do Fla-Flu tipificam a indignação das ruas. Vamos ver se o caô vai acabar ou não. Cenas do próximo capítulo virtual, convocado para o dia 07 de setembro.

Fabio Malini é doutor em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do Laboratório de estudos sobre Imagem e Cibercultura da Universidade Federal do Espírito Santo.

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