“Já disse que não estupro porque você não merece”
O insulto do deputado Jair Bolsonaro a uma de suas colegas leva a refletir que as palavras também podem matar a democracia
O deputado de direita, Jair Bolsonaro, militar da reserva, voltou a ofender gravemente, no recinto sagrado do Congresso Nacional, sua colega, a deputada e ex-ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, por ter-se expressado contra a ditadura militar brasileira, culpada, segundo ela, de assassinatos, torturas e danos às liberdades civis. “Já disse que não a estuprava porque ela não merece”, disse, insolente e provocador.
E o fez às vésperas do Dia Internacional dos Direitos Humanos, que o político brasileiro qualificou de “Dia Internacional dos Vagabundos”.
Segundo ele, que se confessa fervoroso crente em Deus, no Brasil os Direitos Humanos “são defendidos apenas para criminosos, estupradores, marginais e corruptos”.
Há o perigo de que a linguagem sórdida do deputado contra os valores democráticos conquistados com tanta luta pelos mártires da liberdade seja tomado apenas como uma graça por sua excentricidade. Corre-se o risco de que sejam considerados de menor importância até por seus colegas deputados, que nos 20 anos em que Bolsonaro está no poder legislativo nunca tiveram a coragem de processá-lo na Comissão de Ética do Parlamento.
Mais grave ainda é que os cidadãos, apesar de conhecerem a longa trajetória fascista e racista do militar que se declara abertamente contra os homossexuais, defensor da tortura e de que os pais batam nos filhos “para evitar que se tornem gays” continue sendo eleito há 20 anos e tenha voltado este ano como o mais votado do Estado do Rio de Janeiro, com quase meio milhão de votos. E que tenha encontrado abrigo até agora em seis partidos diferentes.
Poderia ser um sintoma e um alarme de que a democracia começa a se vender na liquidação
Essa torrente de votos para um deputado que defende os anti-valores que deveriam envergonhar qualquer democrata deveria nos fazer refletir sobre a saúde de nossa democracia.
Quem como eu viveu de criança e de adulto uma dura ditadura militar como a franquista, que nos colocava um censor dentro do jornal para decidir sobre nossos textos e ideias, se torna talvez mais sensível à liberdade de expressão do que os que nunca passaram por isso. Depois de 50 anos de jornalismo, continuo sendo alérgico a qualquer tipo de censura verbal. A defesa da liberdade de expressão deve ser o coração de qualquer carta Constitucional de um regime democrático. Atentar contra ela aberta ou camufladamente é uma ferida grave à liberdade não só de expressão como de pensamento.
Há o perigo de que a linguagem sórdida do deputado contra os valores democráticos conquistados com tanta luta pelos mártires da liberdade seja tomado apenas como uma graça
Apesar disso, e talvez por isso —porque já vivi seja os horrores de uma ditadura militar assim como o ar puro da liberdade de expressão— sinto-me autorizado a dizer que também as palavras podem matar a democracia.
Assim como na convivência, seja familiar, seja amistosa, na rua como no trabalho, nem tudo é permitido à linguagem, que pode ser mortal como uma arma, uma verdadeira democracia também não deve suportar que palavras possam matar. Matar a honra ou os valores mais sagrados da convivência civil que são o escudo que nos protege contra a indignidade e o arbítrio.
O caso Bolsonaro, a ofender os direitos humanos mais elementares em pleno Congresso, quando o Brasil acaba de fazer seu exame de consciência contra os crimes da ditadura, diante do silêncio cúmplice ou complacente de muitos, é mais do que uma piada. Poderia ser um sintoma e um alarme de que a democracia começa a se vender na liquidação.
A democracia é uma flor delicada que o vento do descuido ou a nostalgia do autoritarismo podem murchar rapidamente.
Essa torrente de votos para um deputado que defende os anti-valores que deveriam envergonhar qualquer democrata
Todos que confessam o credo do amor à liberdade devem ser os primeiros a não cair na tentação de ferir os direitos humanos.
Disse todos, porque se os insultos de Bolsonaro a sua colega Maria do Rosário me causaram náusea e vergonha, também me preocuparam, por vir de um Ministro de um governo democrático, como Gilberto Carvalho, que deveria nesse momento de tensão democrática dar exemplo de moderação, a afirmação de que: “Morri de medo que o 'playboyzinho' ganhasse (as eleições presidenciais)”.
O 'playboyzinho' é o digno senador Aécio Neves, líder da oposição, apoiado por 51 milhões de cidadãos. Reza um adágio latino que: “Corruptio optimi, péssima”, que se poderia traduzir livremente por: “Quanto maior a responsabilidade, mais grave a culpa”.
A democracia deve ser defendida e mimada também com as palavras, que podem ser uma mina de ouro ou o pomo da discórdia.
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