A obra sem fim para levar água ao sertão nordestino brasileiro
Com sete anos de atraso, as águas da transposição do São Francisco passam a correr Mas tudo indica que até o final de 2015, prazo do Governo, a obra ainda não estará pronta
A agricultora Lindomar Ferraz Silva, de 65 anos, aponta para uma mangueira solitária quase sem folhas num descampado da zona rural de Floresta, cidade do sertão pernambucano onde nasce um dos eixos da transposição do rio São Francisco. No local ficava sua casa, que não existe mais. “A mangueira foi deixada ali, de recordação”, conta.
O terreno de Lindomar, cuja área equivale a dois parques Ibirapuera e meio, começou a se transformar em 2007. A vegetação rala e cinzenta da caatinga foi tomada por um canal de concreto que terá 477 quilômetros de extensão, feito para levar a água de um dos principais rios do país para onde as pessoas não têm, sequer, o que beber, em 390 municípios dos Estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte.
Sete anos depois dos primeiros sinais da bilionária obra, e quatro anos mais tarde do que o previsto, a aposentada conseguiu, finalmente, ver um tantinho de rio passar em seu quintal. É ali que fica o reservatório Areias, o primeiro a se encher d’água, no último mês de outubro, quando os primeiros testes da transposição começaram.
No final da tarde de 13 de novembro, ela observava sua criação de cabras descer pelo concreto do canal para saciar a sede. Naquela manhã, ela própria havia enchido alguns baldes no reservatório, para usar em suas “coisinhas” de casa. Mas Lindomar ainda não sabe quando, nem como, passará a receber uma parte do rio pelas torneiras de sua nova casa, construída ao lado do canal e da represa, com o dinheiro pago como indenização pela passagem da obra.
Uma das principais obras hídricas do Governo federal nos últimos anos, a transposição do rio São Francisco tem seguido a passos lentos. Prometida, inicialmente, para 2010, ela teve seu prazo estendido pelo próprio presidente Lula (PT) em dezembro daquele mesmo ano. Na ocasião, em visita à região, ele afirmou: “Estou percebendo que a obra vai ser inaugurada, definitivamente, em 2012, a não ser que aconteça um dilúvio.” Mas, mesmo em meio a maior seca já ocorrida na região nos últimos 50 anos, a entrega atrasou novamente. Agora, está programada para dezembro de 2015 e o Governo garante que, desta vez, não haverá nova prorrogação. “Estamos completando a meta piloto no Eixo Leste conforme o cronograma”, comemorou o secretário-executivo do Ministério da Integração, Irani Ramos, em um vídeo gravado pelo Governo após o início da passagem da água neste final de outubro.
Mas, a um ano de vencer a nova promessa, tudo indica que a construção não estará pronta a tempo mais uma vez. Ainda resta 32% da obra por fazer. Das seis metas de trabalho do projeto, divididas ao longo de dois Eixos (Leste e Norte), apenas uma está próxima do fim. Justamente a mais curta: a que compõe os 16 quilômetros de canal entre o reservatório de Itaparica, onde a água do São Francisco é captada, até o de Areias, no terreno de Lindomar. Todas as outras cinco têm menos de 75% da construção finalizada- uma tem só 30%.
O EL PAÍS percorreu por quatro dias uma parte da obra, e viu um enorme retalho de concreto com trechos prontos e outros onde a construção mal começou. Poucos pedaços já estão interligados.
Há casos como o da área que cruza o assentamento Serra Negra, localizado dentro da segunda meta do Eixo Leste. Apesar de o Governo considerar que 71% dessa meta já está feita, na área do assentamento o canal ainda está sendo escavado. A construção no terreno, reivindicado pela comunidade indígena Pipipan, enfrentou diversos protestos até que se chegasse a um acordo. Os sem-terra de Serra Negra também só concordavam com o início da construção do canal quando o posto de saúde e as quatro casas que teriam que ser demolidas fossem reconstruídas em outro local. Na segunda semana de novembro, centenas de operários corriam em meio a dezenas de caminhões e de tratores, trabalhando, inclusive, durante as noites.
A imagem contrastava com o que se via em outra área, a poucos quilômetros de distância, onde ficará a barragem de Cacimba Nova, também em Pernambuco. A construção ali estava adiantada, mas há alguns meses foi abandonada. Os sinais estavam no local: placas viradas, um buraco de terra revirado e árvores crescendo em meio ao concreto do canal. Só as cabras dos agricultores circulam por ali. “A obra foi parando aos poucos, mas há uns dois meses os operários foram embora”, diz Mauriceli Bevenuto da Silva, de 35 anos.
A família dele, que mora perto do local, depende da água enviada pelo Exército em caminhões-pipa. Na vila de cinco casas, só uma das cisternas é abastecida por essa água gratuita. “A gente divide. Dá para poucos dias. Depois tem que pegar o carro de boi e buscar água num poço.” Eles também compram. Um tambor de 200 litros, para 15 dias, custa 20 reais. Não se sabe a procedência dessa água.
O Ministério da Integração diz que o atual prazo de conclusão das obras é o “compatível com a complexidade do empreendimento, sobretudo se comparado a outras experiências de transposição de águas pelo mundo”. Diz que, em 2011, estabeleceu um novo modelo de licitação, contratação e acompanhamento das seis metas da obra. A construção, picotada entre várias empreiteiras, enfrentou problemas devido a um projeto básico mal feito. No Ceará, por exemplo, ele indicava que o túnel Cuncas I, visitado por Lula naquele dezembro de 2010, deveria ser construído num terreno arenoso. A estrutura desabou quatro meses após a passagem do então presidente e foi refeita ao lado, onde o solo tinha mais qualidade.
Situações como essa deixaram a obra 82% mais cara: um salto de 4,5 bilhões de reais para 8,2 bilhões. Também levaram desesperança a milhares de famílias, que sonham com a solução, que é planejada desde o século 19. E geraram inúmeras desconfianças. Há aqueles, como o padre Sebastião Gonçalves da Silva, destacado pela igreja para acompanhar os afetados pela obra, que acreditam que apenas o agronegócio lucrará com a grandiosa estrutura. Já o Governo federal garante que a água será destinada também aos pequenos agricultores.
Enquanto as águas do velho Chico não chegam, definitivamente, para as 12 milhões de pessoas no caminho da obra, a agricultora Lindomar já sabe o que fazer com o trechinho de rio que cruza o seu pedaço de sertão: “Vou comprar uma bomba pequena, dessas à gasolina, e puxar a água do reservatório direto para a minha caixa d’água.”
Os vizinhos atrás da parede
O local onde Adão Cordeiro de Araújo, de 69 anos, plantava milho, feijão, cana-de-açúcar, mamão, tomate, além de capim e palma para dar ao gado deu lugar a uma enorme parede de pedras que margeia um futuro reservatório da transposição. Dos 78 hectares de caatinga que pertencem a seu Adão, a obra tomou 15, justamente na área do baixio, onde o terreno forma um vale mais fértil. O muro acabou com a plantação, que era vendida pela família para ajudar na renda. O gado ficou sem ter o que comer –com as costelas à mostra, os animais são alimentados agora com uma ração comprada, que consome os 715 reais que ele recebe de aposentadoria. Muitas cabeças morreram porque não havia como dar de comer para todos.
“Quando eles vieram para fazer a planta dessa barragem, perguntaram se eu concordava com a transposição. Eu disse: ‘Eu, da minha parte, não preciso porque tenho meus poços de água, o capim plantado para os bichos... Mas, se lá na frente tem outro passando sede, eu não posso empatar nada’”, conta ele. “Não é porque eu tenho água para beber, para me manter, que vou deixar os outros sofrerem.”
Pelo pedaço de terra perdido, onde também ficava a casa da família, o curral, o chiqueiro e três poços de água já escavados, seu Adão foi indenizado em 62.000 reais. Para reconstruir o que ficou para trás, a alguns metros de distância, usou todo o dinheiro e vendeu uns garrotes para complementar os gastos. Hoje, só restou um poço na terra, onde a comunidade do entorno busca água para dar aos animais e que serve também para os afazeres da casa. O que era usado pela família para beber, com água potável, foi soterrado. Eles precisam comprar água.
"Hoje, os vizinhos atrás dessa parede choram, todos estão sofrendo. Fico aqui só imaginando como vou usar a água dessa barragem quando ela estiver pronta", planeja. As obras, neste trecho, estão paralisadas no momento. Além da parede, de um pedaço do canal, e dos buracos deixados pelas máquinas, não há por ali sinais de uma futura represa.
A espera pelo lote irrigado
Por toda uma vida, José Onório dos Santos, de 64 anos, só conhecia um jeito de trabalhar: plantava sua roça num pedaço de lote que pertencia a um fazendeiro, pegava dinheiro emprestado com ele para comprar comida e veneno para as pragas da lavoura e, no dia da colheita, entregava metade da produção para o patrão. Com a outra metade, pagava as dívidas com o próprio fazendeiro. “Às vezes não sobrava nada de dinheiro e a gente ainda ficava devendo. Mas o patrão era bom, não cobrava o que faltava e começava a contar do zero no outro mês.”
Quando chegou a notícia de que a obra do São Francisco cruzaria as terras da fazenda, não se sabia o que aconteceria com eles, os meeiros, que não possuíam as terras, mas tinham nelas o único sustento. A maioria das famílias foi embora. A dele ficou, ao lado de outras quatro. O dono da fazenda acabou indenizado e os trabalhadores, alojados em um núcleo habitacional pertinho do que será a primeira estação de bombeamento do Eixo Norte, no município pernambucano de Cabrobó. A obra neste trecho ainda está incompleta, mas bastante adiantada.
No núcleo, cada família recebeu uma casa própria e terá direito a um lote de terra com sistema de irrigação para fazer a própria plantação. Mas esperam por isso há quatro anos. Por ora, recebem uma pensão de pouco mais de 1.000 reais do Governo. "Até essa data tô esperando. Já tinham até cercado nossos lotes com arame, mas demoraram para entregar e [os ladrões] vieram e carregaram todo o cercado", conta ele. Outra preocupação das famílias é que os lotes prometidos ficarão do outro lado da rodovia federal cruzada pela obra. "Eles prometeram que vão construir uma ponte para que a gente não precise dar tantas voltas com os animais. Mas também estamos esperando."
A água do Exército
Na casa da dona de casa Cristiana Gomes da Silva, de 30 anos, a água potável chega a cada dois meses, dentro de um caminhão-pipa pago pelo Exército. Ela é depositada dentro de uma cisterna de plástico que fica no quintal e serve para beber, cozinhar e, contrariando a recomendação do órgão nacional, para tomar banho, conta ela, um tanto envergonhada. “O Exército não quer que use a água potável para tomar banho, mas não tem como fazer. Vou dar banho nas minhas crianças dentro de cacimbão, com água suja?”, explica. A roupa é lavada na casa do sogro, onde um sistema de bombeamento improvisado foi colocado para puxar a água de um pequeno riacho.
Esse riacho, com água poluída, era de onde as cerca de 30 famílias da comunidade perto do município de Ibimirim, também em Pernambuco, retiravam a água para beber até quatro anos atrás, quando o Exército passou a enviar os caminhões. Antes de beber, a família a tratava com pastilhas de cloro, distribuídas pelos médicos do Programa de Saúde da Família. “Essa coisa do Exército foi a melhor coisa que aconteceu. Na época da eleição, tinha um boato de que se o Aécio [Neves] ganhasse, ele ia tirar esses caminhões. Se eles parassem de vir, Deus me livre!”
O Exército envia para a vila sete caminhões-pipa por mês. Em um acordo feito com a comunidade, nem todas as casas recebem a água. Apenas residências com idosos e crianças pequenas têm a cisterna cheia todos os meses. Outras, fazem um rodízio e recebem a cada dois meses, como a dela. Já a do irmão de Cristina, João Batista, que mora apenas com a mulher, não recebe nunca. A água que ele usa é retirada da casa da irmã e da escola rural da comunidade, que é abastecida, com regularidade, por caminhões-pipa enviados pela prefeitura. Tudo fica armazenado em baldes improvisados, como antigos recipientes de óleo para motores de veículos.
Os moradores da vila sonham com a conclusão da transposição, que depositará água no açude barra do Juá, ali perto. Hoje, em meio a pior seca das últimas décadas, essa fonte de água está praticamente seca. “Se a água chegar mesmo ali, a gente pode dizer que está rico”, diz ela. “Ia dar para beber, para plantar, para a criação, para lavar roupa...”
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