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Consumo e soja: um modelo esgotado

A inflação e a queda do preço da leguminosa mostram os limites do sistema

Francisco Peregil
Plantação de soja na localidade de Olivera, Argentina.
Plantação de soja na localidade de Olivera, Argentina.EFE

Na seguinte cena não há nada estranho, mas está cheia de sinais preocupantes. Estamos em um supermercado no bairro portenho da Recoleta, um dos mais ricos da Argentina. Um homem de meia idade, vestindo camiseta, paga sua compra de 250 pesos —equivalente a 70 reais— em cinco vezes sem juros. Milhões de argentinos fazem operações semelhantes diariamente. Alguns porque chegam ao fim do mês com pouco dinheiro e outros porque sabem que em cinco meses a inflação terá convertido em trocados a última prestação a ser paga. Na Argentina costuma-se pagar a prazo de um espremedor de laranja até as férias de verão. O Governo incentivou o consumo interno como a maneira mais eficiente para escapar da crise de 2001. E até se virou para que muitos salários subissem acima da inflação enquanto ia pagando suas dívidas no exterior.

Nos últimos oito meses o preço da soja caiu de 530 dólares para 380

Depois dos Estados Unidos e do Brasil, a Argentina é o terceiro produtor mundial de soja. E os altos preços da leguminosa foram muito úteis para que os salários subissem mais do que a inflação. Mas a soja está caindo há oito meses. Chega o Natal e as pessoas querem manter o ritmo de consumo, sair e comprar presentes. Os sindicatos pedem gratificações e isenções de impostos em dezembro para compensar a inflação. Até os sindicatos mais próximos do Governo pedem esses pagamentos e isenções. E os sindicatos de oposição passam diretamente à ação: na quinta-feira houve uma greve parcial de caminhões, trens e ônibus em Buenos Aires, das quatro às sete da manhã, as horas decisivas para ir ao trabalho. Cristina Kirchner vê nessas reclamações a intenção política de desgastar o Governo mais do que uma autêntica necessidade econômica.

“O que está se vendo agora é o esgotamento de um modelo econômico”, explica Roberto Bisang, professor titular de Economia Agropecuária da Universidade de Buenos Aires. “De 1994 a 2010 a Argentina passou de 20 a 32 milhões de hectares de soja cultivados. E a produção pulou de 42 milhões de toneladas para mais do dobro, 96 milhões. Mas acontece que a terra é finita. E Deus é argentino, mas nem tanto. Novos países foram entrando no mercado da soja, como a Ucrânia, o Cazaquistão e a própria Rússia. E no ano passado os Estados Unidos tiveram a melhor safra do século. Assim, nos últimos oito meses o preço da soja caiu de 530 dólares a 380”.

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Essa queda, segundo Roberto Bisang, expôs todas as deficiências de um modelo apoiado no consumo. “É óbvio que o contexto internacional não é favorável. Mas, quando fez sol, a Argentina não comprou um guarda-chuva como fez o Chile; aqui não se economizou, não se investiu na indústria. Apenas se incentivou o consumo primário: televisores, eletrodomésticos, automóveis e todos os cacarecos que a China nos vende. Esses telefones e esses carros são comprados em boa parte com os dólares que a soja coloca neste país. Porque a soja responde por 24,5% das exportações totais. E o Governo arrecada dos produtores de soja 35% de tudo o que vendem fora. Esse dinheiro deu para o primeiro automóvel e para o primeiro televisor de plasma, mas está com os dias contados. Assim se ganham eleições com 54% dos votos, como ganhou Cristina em 2011. Mas apaga a possibilidade de ter um país industrializado”.

O Governo sempre esgrimiu que seu primeiro objetivo é preservar os postos de trabalho. E nisso se manteve firme. Mas não foi um bom ano para a Argentina. Cristina, que sempre se negou a desvalorizar o peso porque dizia que era como colocar a mão no bolso dos mais pobres, se viu obrigada a desvalorizá-lo em janeiro. Além disso, o país sofreu dois trimestres consecutivos de queda no Produto Interno Bruto, o último de 2012 e o primeiro de 2013. E no terceiro trimestre a taxa de desemprego passou de 6,8% a 7,5%. E a indústria automobilística caiu 23,2% nos últimos nove meses. Não obstante, o ministro da Economia, Axel Kicillof, afirma que o país está melhor do que em 2012.

A terra é finita. E Deus é argentino mas não tanto Roberto Bisang, da Universidade de Buenos Aires

Continuemos com o senhor de camiseta que paga sua compra à prestação. Faz calor, mas os dias mais quentes do verão estão por chegar. Isso significa que o uso do ar condicionado colocará no limite a capacidade energética, que pode haver cortes de luz e protestos nas ruas. É isso que aconteceu em dezembro do ano passado em Buenos Aires.

E aos cortes de luz em dezembro se acrescenta algo pior: o saque aos supermercados. Nos últimos dois anos morreram 30 pessoas nos distúrbios de dezembro no país. O que leva centenas de pessoas a roubar televisores e eletrodomésticos nos supermercados? O Governo vê nesses atos a mão escura de dirigentes municipais da oposição. Mas não há provas irrefutáveis contra ninguém.

E no meio disso tudo está a batalha do Governo contra os chamados fundos abutres. Muitos consultores econômicos acreditam que se o Governo conseguiu afugentar o fantasma de uma segunda desvalorização é porque o mercado acredita que o Governo e os abutres chegarão a um acordo em janeiro. Isso poderia representar uma injeção de dólares que a economia tanto necessita. Mas nada está garantido.

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