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Um investimento desastroso e os voos de seu diretor mancham o Greenpeace

A ONG mais famosa da área ecológica sofreu dois golpes tão fortes que forçaram seus membros a pedir desculpas públicas

Isabel Ferrer
Kumi Naidoo (direita) e Pascal Hustin na França em 2009.
Kumi Naidoo (direita) e Pascal Hustin na França em 2009.David Vincent (ASSOCIATED PRESS)

A caminho de converter-se em uma rede ecologista global, as duas últimas semanas foram um teste para o Greenpeace. A ONG mais famosa do ramo, com escritórios em 41 países e quase 3 milhões de doadores, sofreu dois golpes tão fortes que forçaram seus membros, especializados em colocar Governos e multinacionais em situações embaraçosas, a pedir desculpas públicas. Causado por um erro humano, o primeiro tropeço parece fácil de explicar: sem pedir permissão, um de seus funcionários comprou divisas estrangeiras para financiar os trabalhos das sedes abertas fora do âmbito da União Europeia.

A operação não é ilegal, e o Greenpeace centraliza sua gestão financeira em sua central em Amsterdã (Greenpeace International) para proteger-se das flutuações do mercado de valores. O problema é que o funcionário calculou mal a cotação do euro e perdeu 3,8 milhões de euros (11,4 milhões de reais) de doações particulares. Tendo em conta que a própria organização cifrava em 2013 em 300 milhões de euros (900 milhões de reais) seu orçamento geral, dos quais 72,9 milhões de euros eram donativos, a falta de controle interno vai custar caro, literalmente.

O outro golpe recebido talvez chame menos a atenção, mas suas repercussões podem ser ainda maiores. Pascal Husting, seu chefe de campanhas, voou semanalmente de Luxemburgo, onde reside com sua família, à capital holandesa, onde trabalha. Em seu caso, a desejada conciliação trabalhista incorreu durante dois anos e meio no mesmo erro de qualquer executivo comum. Ou seja, contribuiu para uma emissão excessiva de gases do efeito estufa, um de seus piores vilões. Para cobrir uma distância de 359 quilômetros por rodovia, teriam sido gerados 142 quilos de CO2 em cada viagem. Em dois anos, é como se tivessem sido gastos sete barris de petróleo, segundo o serviço americano de proteção ambiental. Uma vergonha para um grupo que exige que os capitães da indústria mundial evitem os aviões para distâncias de menos de 1.000 quilômetros. E que, em 2010, foi ao Ártico para investigar a acidificação dos oceanos associada ao dióxido de carbono.

Como o próprio Husting admitiu ao telefone, em meio à voragem de críticas, “ir de trem me custa 12 horas, porque cruzo três países, mas agora compreendo que foi um engano”. “Peço desculpas a todos os que nos apoiam”, acrescentou. Ex-diretor do Greenpeace na França, ela trabalha no grupo há 20 anos e sua presença em Amsterdã é necessária. Da capital holandesa ele administra uma reorganização que esvaziará a sede central, para se concentrar em países onde possa combater a mudança climática. “Teremos escritórios em Washington, Taipé, Roma, Sydney, Hong Kong ou Copenhague, entre outras, mas levou mais tempo de que eu pensava para pôr isso em prática. De uma organização assentada na Holanda, passaremos a ser uma rede global. Nosso pessoal trabalhará de outra forma, e eu pegarei esta semana meu último voo. Depois, usarei a ferrovia. A sacudida das críticas, que foram muitas, serviu de incentivo para acelerar as mudanças”, disse.

Só na Holanda, o grupo perdeu 675 doadores (no mundo todo tem 454.000) irritados por seus deslocamentos. De qualquer forma, humilhado como está, Husting acredita que seu caso não compromete os valores da organização. “Não nos vendemos a nada nem a ninguém”, ressaltou.

Egbert Tellegen, catedrático emérito de meio ambiente e muito ativo hoje no Milieu Defensie, o ramo holandês da ONG Amigos da Terra, tem suas dúvidas. “O caso do mau investimento financeiro é um grande erro, mas não necessariamente um sintoma de que algo vá mal na organização. O empregado não obteve lucro e foi despedido. Já o caso dos aviões mostra a falta de atitude crítica ante esse tipo de contaminação. Mas o Greenpeace não é o único. Há cientistas muito comprometidos que não fazem nada mais do que voar para denunciar como se destrói o ambiente. Falta modéstia no mundo do meio ambiente, seja em universidades, Governos ou grupos ecologistas”, assinala.

Por sua vez, Jan Paul van Soest, assessor em matéria de sustentabilidade para os setores público e privado na Holanda, teme, sim, que o dinheiro perdido seja um sintoma de descontrole na administração. “As pessoas podem pensar que o Greenpeace perdeu o norte, quando a transferência de cifras nada tem a ver com seus objetivos”, diz. “Pode-se ser uma empresa de âmbito internacional com uma missão social, mas é preciso saber administrá-la. A exigência de transparência aumentou para qualquer organização, e eles não podem ficar atrás. O público quer que seu dinheiro seja gasto de forma adequada, e descentralizar é um exercício que deve ser bem feito”, assinala. Segundo a revista alemã Der Spiegel, que levantou o caso, o funcionário em questão comprou em 2013 divisas no valor de 36 milhões de euros (108 milhões de reais). Em 2014, comprou mais divisas – no valor de 23 milhões de euros (69 milhões de reais) –, sempre através da Monex Europe, uma entidade financeira com sede no Reino Unido e subsidiária da Holding Monex (México). O Greenpeace já tinha constatado em 2013 que a operação era um erro, mas não disse nada. A revista aponta que os ecologistas esperavam ter antes em mãos os resultados da auditoria encomendada à americana KPMG. As perdas, claro, aparecerão no relatório anual, previsto para julho.

O ativista sul-africano de direitos humanos Kumi Naidoo, atual diretor-executivo internacional do Greenpeace, é o motor do novo enfoque. Convencido de que as grandes ameaças ao meio ambiente estão nos países do Hemisfério Sul, ele incentiva a transferência de seu pessoal para onde haja desmatamento, oceanos em perigo, baleias caçadas, energia nuclear ou ecossistemas exaustos. Uma ambiciosa tarefa que não pode se enfraquecer no cofre. Quando o Artic Sunrise, um de seus navios, foi retido em setembro passado com seus 30 tripulantes no Ártico russo, seu destino mobilizou a opinião pública internacional. Até os mais críticos em relação aos métodos dos ativistas consideraram excessivo o zelo de Moscou ao acusá-los de pirataria por denunciar as prospecções feitas pela Gazprom na zona. Agora, por outro lado, as profusas desculpas que aparecem em todos os sites da organização na internet não dissipam o temor dos peritos consultados de que os problemas do departamento de finanças sejam estruturais.

“Vemos as ONGs, especialmente as mais conhecidas – Greenpeace, Anistia Internacional ou Human Rights Watch –, como a consciência coletiva da sociedade. Não notamos que elas se transformaram – eram grupos de pressão de fora do sistema, mas passaram a fazer parte dele. Já são organizações profissionais, e esperamos que administrem com eficácia seu dinheiro, que é nosso”, aponta um membro do Instituto de Relações Internacionais Clingendael, com sede em Haia. Apesar de não terem voto nas Nações Unidas, por exemplo, sua voz, influência e conhecimentos, às vezes superiores aos dos próprios Governos, “deram-lhes poder, visibilidade e uma reputação que devem ganhar diariamente”, acrescenta.

Dito de outro modo, o Greenpeace já é adulto e seu desejo de melhorar o mundo não é incompatível com os controles de qualidade que ele exige dos outros. “Em um cenário onde os Estados só podem trabalhar em colaboração com outros atores internacionais, entre eles as ONGs, não se pode colocar o dedo no olho sem pensar que se está também na mira do público”, conclui o integrante do Clingendael.

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