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Vidas no esgoto

Centenas de pessoas são diariamente deportadas em El Chaparral, um portão no muro que separa os EUA de Tijuana

Luis Pablo Beauregard
Juan Carlos, com seus únicos pertences, no cais do rio Tijuana onde vive.
Juan Carlos, com seus únicos pertences, no cais do rio Tijuana onde vive.Saúl Ruiz

El Bordo

“Aqui começa a pátria.” Esse é o lema de Tijuana (Estado da Baixa Califórnia), onde, conforme se olhe, o México começa ou termina. Um muro de 6,4 metros de altura separa esta cidade de 1,3 milhão de habitantes dos Estados Unidos. Perto da guarita de San Ysidro, o porto terrestre com mais travessias no mundo, um magro filete de água turva corre por um grande canal. Em torno desse rio cheio de esgoto se estabeleceu o gueto de Tijuana. Chama-se El Bordo e é o lugar onde murcham os sonhos dos emigrantes deportados pelos Estados Unidos.

No muro existe um pequeno portão fortemente custodiado: El Chaparral, que se abre diariamente quantas vezes for necessário. Por aqui saem os deportados, às vezes em um ritmo desenfreado. Em 2013 foram em média 268 pessoas por dia na Baixa Califórnia. “Bem-vindo à sua casa”, é a primeira coisa que se vê em um letreiro.

De El Bordo se pode ver o símbolo da cidade de Tijuana, um gigantesco semicírculo prateado que é na verdade um relógio que não funciona. Para muitos dos que estão ali, o tempo parou. É uma constante nesta pequena comunidade de desarraigados que ficaram no limbo, sem a possibilidade de retornarem aos seus lugares de origem, e onde fixam uma data, que nunca chega, para retornarem aos Estados Unidos.

No canal há mais irmandade que na rua', diz Juan Carlos, que cruzou a fronteira pela primeira vez com 12 anos

A vida no canal piorou nos últimos anos por causa da política de deportações do presidente Barack Obama, a quem os grupos de latinos nos Estados Unidos apelidaram de deporter in chief [deportador-chefe]. O Governo do democrata chegou a alcançar um ritmo de 400.000 pessoas expulsas por ano (368.000 em 2013). Quase dois milhões dos cinco milhões de expulsões da última década foram decididas com Obama na Casa Branca. A tendência começou a diminuir, mas os efeitos das duras políticas contra a migração podem ser notados em lugares como El Bordo.

Não existe outro fenômeno como este nos mais de 3.000 quilômetros de fronteira comum, apesar de os deportados retornarem ao México por outras oito cidades além desta. Por aqui, no entanto, é expulsa a maioria dos mexicanos que passaram mais tempo residindo nos Estados Unidos. Cerca de 60% dos habitantes do canal permaneceram entre 6 e 25 anos do outro lado. “Esses são os que têm menos redes, os que já não conhecem o país. São os mais vulneráveis. Ficam na fronteira porque vão voltar para onde?”, diz Laura Velasco, catedrática do Colégio da Fronteira Norte, um centro de estudos sociais focado no fenômeno migratório. Velasco estima que haja no subúrbio entre 700 e 1.000 pessoas. O responsável pela polícia de Tijuana afirma que são quase 2.000.

Nos quatro quilômetros de comprimento do canal se observam casas construídas com restos de papelão e plástico, chamadas de ñongos (corruptela de jungle – selva, em inglês). No chão se veem restos de comida, seringas de injeção, papel higiênico e lixo. Não há crianças, e pouquíssimas são as mulheres. Nos túneis, rolos de mantas em meio aos quais aparece o braço ou uma perna de alguém que dorme de ressaca. Ali, ao resguardo do sol, alguns se distraem com garrafas de álcool barato ou com doses de heroína compradas por 20 pesos, cerca de 3,40 reais. Mas esta não é a história de uma espécie de cracolândia, e sim de um bairro onde fica difícil um morador se animar com o futuro.

A perseguição

“Tudo isto é mais difícil de encarar se não fico emaconhado”, diz Juan Carlos. Passaram-se oito meses desde que o deportaram. No começo, quando cruzou o portão do Instituto Nacional de Migração (INM) em El Chaparral, o ponto de entrada de todos os deportados para Tijuana, tinha o suficiente para pagar 120 pesos (20,60 reais) por um quarto de hotel. Mas as coisas mudaram. Tornou-se mais um habitante do canal. “Aqui há mais irmandade do que na rua”, diz. Tem 32 anos e é originário de um povoado de Michoacán, a 2.600 quilômetros de distância.

Juan Carlos cruzou a fronteira pela primeira vez em 1994. Tinha 12 anos. Recorda a viagem enquanto brinca com uma cruz prateada em suas mãos. Caminhava pelo deserto. Suas pernas tremiam. Fazia um dia que não tomava água. Lançou mão da única ajuda possível: a intervenção divina.

"Pedi ao frei Toribio [Toribio Romo, o santo dos migrantes] que não me aparecesse, só que me colocasse onde houvesse água”, recorda. Uma hora depois, topou com duas mulheres no caminho. Uma delas, conta, lhe deu de presente um galão de água.

O episódio ficou gravado na pele de Juan Carlos, que mostra uma tatuagem do patrono dos mojados (molhados, como eram chamados os migrantes que se molhavam na travessia do rio Bravo). Seus braços cheios de tinta contam também algo da vida que teve em Los Angeles, onde aderiu a uma gangue. Aos 14 anos já estava na prisão, acusado de tentativa de homicídio, porte de entorpecentes e roubo. Entre os deportados em 2013, 82% tinham antecedentes penais.

“Estou pagando por algo que fiz”, diz Juan Carlos, convencido de que o verdadeiro purgatório dos seus crimes não foi a prisão na Califórnia, e sim este lugar de Tijuana. Afirma que se converteu ao cristianismo e que deixou no passado sua vida nas gangs norte-americanas.

O cabeleireiro Rubén, outro habitante de El Bordo, em Tijuana, que dias depois conseguiu entrar nos EUA.
O cabeleireiro Rubén, outro habitante de El Bordo, em Tijuana, que dias depois conseguiu entrar nos EUA.Saúl Ruiz

Todos os pertences que ele tem na vida cabem em um saco de ração que ele carrega para todo lado. Lá ele guarda os restos de um caderno com seus desenhos para tatuar, um par de sapatos pretos, duas calças, algumas camisetas e, o mais importante, uma camisa de manga comprida, que usa para esconder suas tatuagens quando procura trabalho. Como alguns outros migrantes do canal, Juan Carlos dedica duas ou três horas por dia a procurar trabalho na cidade. “Há muita discriminação. Quando ficam sabendo que eu moro aqui, negam trabalho”, diz.

O resto dos seus pertencentes ele perdeu no último incêndio. Ele e outros asseguram que policiais de Tijuana chegaram para atear fogo nos seus ñongos. Juan Carlos derrama lágrimas discretas quando percorre a terra queimada onde se erguia sua casa. Diz que aí foi consumido o resto das suas coisas, entre elas as únicas fotografias que tinha da sua família, que permanece nos Estados Unidos.

O assédio da polícia local à população de El Bordo é uma estratégia mantida “há vários anos”, segundo Velasco. Quem vive no canal é vítima da estigmatização por parte dos habitantes de Tijuana, que consideram a área como um ninho de delinquentes. “Não são migrantes os que estão lá, são viciados”, diz de forma cortante o diretor da polícia, Reyes Montilla, que nega que seus homens ateiem fogo às casas do canal.

Juan Carlos, como a maioria dos seus vizinhos, soma várias detenções. “Levam a gente por 8 ou 12 horas. O melhor é não ficar contra eles, porque eles te acham e somem com você”, diz. Todo dia, a polícia e os moradores de El Bordo encenam uma pantomima. As sirenes começam a soar, e o alarme se espalha entre os habitantes. "Operação, operação!", gritam, enquanto correm para se esconder. As autoridades detêm os que conseguem e os colocam numa caminhonete, com uma única sentença: “Já te disse que não pode ficar aqui”, advertem. O veículo parte rumo à sede do comando policial. Horas depois, os detidos são liberados, porque os delitos são inexistentes. As operações, diz o chefe de polícia Montilla, “não são feitas com o intuito de detê-los, mas para que descansem, que fiquem afastados dos vícios por algumas horas, que tomem banho, que lhes deem comida”. Um assistente de uma universidade foi detido cinco vezes em uma semana enquanto auxiliava numa pesquisa.

Por volta das 14h, outra caminhonete chega à área. Mas agora ninguém foge dela. Reconhecem-na à distância. É a hora da comida. A senhora a bordo não permite fotos. Diz que ficou sabendo de gente que rouba as imagens na internet e pede dinheiro para financiar o gesto caridoso alheio. Um enxame se forma ao redor de um homem que segura um pincel atômico. Escreve no dorso da mão de quem se aproxima: 1, 2, 3, 4… Assim até 350. São as senhas. Cada um receberá um sanduíche de presunto e um copo de refresco. Na fila só há oito mulheres.

As autoridades veem com certo desprezo esse tipo de assistência. Acreditam que as pessoas se sentem acomodadas com essas ajudas. “Conseguem sua droga e seus mantimentos. Não querem sair de lá”, diz o chefe de polícia. Mas as coisas são mais complexas. Mario Flores, um migrante de quase 50 anos, que esteve quase 20 nos Estados Unidos, perambula pela zona há uma semana. Precisa de 800 pesos (cerca de 140 reais) para pagar metade da passagem que o levará de volta a Oaxaca, seu lugar de origem, a mais de 3.000 quilômetros de distância. Alguns Estados mexicanos oferecem cobrir a metade da passagem, mas Mario não tem dinheiro. Foi detido pelas autoridades migratórias em Wisconsin quando se dirigia ao trabalho, por isso não tem acesso às suas escassas economias. O tempo joga contra ele. Os albergues que acolhem migrantes só oferecem uma cama e chuveiros por até 12 dias. Depois, rua.

A travessia

Fuck! É assim que eu vou terminar?”, diz Rubén, de 27 anos, quando vê os moradores do canal. Ele é um deportado que trabalha como voluntário no refeitório Padre Chava, uma casa para migrantes que fica em frente ao canal, atravessando uma rua. Mistura seu espanhol nativo com o inglês que aprendeu nos 10 anos que residiu em Fresno (Califórnia). Desde 2012, tenta fugir do limbo de Tijuana com um só objetivo: voltar a ver sua esposa e seus dois filhos.

As perguntas que surgem na cabeça desse rapaz de olhos tristes e profundas olheiras rondam a mente de todos os que foram forçados a voltar para o México: O que eu vou comer hoje? Onde vou dormir? Voltarei a ver minha família?

Rubén há dois meses dorme ao relento. Está esperando a névoa. Seu refúgio, muito perto da fronteira com os Estados Unidos, conta com alguns espaços abrigados e garrafas de água. Compartilha o lugar com oito pessoas. Ali tudo é questão de observar e guardar na memória. Recordar o percurso da caminhonete da migra. E o da moto. Aprender a que horas é a mudança de turno dos vigilantes da fronteira.

“Já temos a zona estudada. Temos 10 minutos para entrar”, diz. Seu exemplo foi um senhor de 65 anos que desapareceu diante dos seus olhos. “Cruzou com uma boa neblina", recorda.

Um deportado se lava no rio.
Um deportado se lava no rio.Saúl Ruiz

À espera de Rubén, os EUA oferecem uma vida que o México não pôde lhe dar. Desde que ele foi deportado, tentou cinco vezes fazer a travessia. Em todas foi detido. Sua família ficou destroçada depois que um policial o deteve num racha em 2011. Nos primeiros dos 10 anos em que esteve na Califórnia, ele se dedicou a instalar carpetes. Até que sua esposa decidiu se aventurar em um novo negócio.

“Vou lhe contar a verdade. Entramos no negócio da mota [maconha]. Os gringos adoram esse troço”, diz esse mexicano, dono de uma característica peculiar: tem seis dedos em cada mão.

Sua esposa, uma cidadã norte-americana de origem mexicana, obteve uma permissão para vender maconha medicinal. Sua vida começou a mudar. Compraram 15 plantas e em poucos meses ganharam 25.000 dólares. “Deixei de ir ao Walmart [um supermercado popular]. Tinha de tudo. Roupa melhor, sapatos melhores, carro melhor”, recorda. Rubén trocou seu carro surrado por um esportivo de 20.000 dólares, no qual foi detido quando tentava derrotar um coreano a 90 milhas (144 quilômetros) por hora. Esse dinheiro sumiu. Calcula que tenha investido 20.000 dólares em suas infrutíferas travessias em vários pontos da fronteira, sendo que milhares foram pagos quando uma máfia o sequestrou em Altar (Estado de Sonora).

“Tudo virou para mim. Eu tinha tudo, e agora preciso fazer fila por um prato de comida”, conta Rubén.

Rubén faz pequenos trabalhos no refeitório. Às vezes varre ou ajuda na cozinha. Outras, como esta manhã, faz cortes de cabelo gratuitos para outros migrantes. “Indocumentado, sim, mas ensebado, nunca”, diz Marcelo, um migrante deportado de 28 anos, enquanto o barbeador elétrico desliza sobre seu crânio. Rubén auxilia pessoas como Marcelo a andarem alinhadas e conseguirem um trabalho que renda alguns pesos. É o quarto dos 35 cortes que fará no dia.

O refeitório Padre Chava é um dos lugares que ajudam Tijuana a aguentar a avalanche de deportados. A benemerência ajuda a tecer uma rede de segurança para quem retorna. Esta instituição existe há 15 anos, mas só há 4 está instalada no centro de Tijuana, perto da linha fronteiriça. Seu edifício tem três andares e é administrado por voluntários católicos que oferecem comida quente e gratuita no térreo; serviços médicos, jurídicos e até higiênicos (chuveiros, banheiros e cortes de cabelo) no segundo andar; e um albergue no terceiro. “Quando chegamos ao centro da cidade, servíamos 700 cafés da manhã. Hoje há uma média de 1.250”, diz Margarida Andonaegui, a coordenadora.

A sorte acompanha alguns poucos migrantes. Rubén é um deles. Duas semanas depois de conceder a primeira entrevista, a névoa chegou. E, com ela, uma nova oportunidade de cruzar a fronteira. Cinco amigos, que durante dias dormiram escondidos perto do muro, foram os que se infiltraram. Algumas horas depois, uma patrulha fronteiriça os encontrou.

“Eu me atirei ao chão, no morro”, relata Rubén. Lá, com o peito na terra, escutou como os policiais se comunicavam entre eles. “Um migra disse que tinha o relato de quatro [indocumentados]”, diz. Os agentes fronteiriços procuraram até topar com quatro pessoas. Ele era o quinto. Conta sua história de um telefone em Fresno (Califórnia). “Já estou aqui, depois de dois anos de batalhar por isso”, diz, contente, o barbeiro de 12 dedos que conseguiu mover os ponteiros do relógio.

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